Foram morangos com vinho, que ela comeu no jantar. Agora no chão na minha frente misturados numa poça de bílis e maresia. Foram morangos com vinho ou era minha alma que ela tinha bebido, agora despedaçada em pequenos coágulos cheirosos pelo chão de tábua corrida. Eu trouxe a vodca, trouxe a vida, mas estou sendo perseguido, não há dúvidas, e quero que ela me ache ali no meio da poça, onde posso ver meu reflexo. Onde posso cobrar a dívida do desejo desperdiçado pelo zelo. O reflexo sorri e eu não. E por quê? Porque foram morangos com vinho. Foi agorinha. Não fiquei surpreso. Abriu a porta, um beijo rápido, sentamos no sofá, pernas sobre pernas, aquele silêncio tão raro, então se virou de lado, de olhos fechados, e tudo ficou bem ali no chão de taco esparramado, meu rosto refletido. Não era como eu, e parecia tão eu mesmo. Agora ela dorme no sofá encardido de filme inglês. Ronca, uma vez baixo, outra vez alto, então se engasga, golfa, engole o ar. Na prateleira “A Convidada”, da Simone Beauvoir e um livro de conversação em francês. Na cozinha sirvo a vodca. Estou aqui, pensando: tantos planos, tantos danos, tantos anos... E foram morangos, tão cheirosos quanto o vômito da vida, de vinho, encarnado, de cor tão viva que só podia estar...
Não, não vou dizer isso ainda. Ou será que não eram morangos? Ou será que não éramos ela e eu e sim mais um começo de mais um adeus. Não. Eram mesmo morangos, mas que importa agora, se antes de começar já perdi a luta, abri a guarda, e nem tenho mais alma, muito menos coração, a não ser por aquela bola de carne gordurosa, que é onde depositamos todas as nossas esperanças e desculpas, porque de fato não existem, ninguém nunca os viu, alma e coração, a não ser em compota. Então dizemos que é ali que está o que não sabemos explicar. O diabo com isso! Estou sozinho escrevendo, não que alguém vá ler um dia, nem me importa. Perguntei a ela assim que ela caiu por detrás da porta, ao me deixar entrar com um sorriso, sobre a poça de bílis: quer que eu vá embora? Não, por favor, fique, disse o mar de Copacabana, durante a noite toda, com suas rajadas de onda. Pois fiquei, indo e vindo da cozinha, atrás da vodca, “termino a garrafa e me jogo pela janela para ficarmos quites”. Mas sentei na janela, sob a luz de uma sobra de vela, e, ah! como quis ficar ali para sempre, ouvindo as vozes do paraíso, observando na marquise o movimento de um pombo sem uma das patas, aqueles olhos alaranjados e indecisos, como os meus que, apesar de não serem laranja, mesmo que ninguém entenda, filtram as coisas em azul-turquesa. E as vozes são do paraíso mesmo, não, agora é Alceu Valença, minto, Elis Regina, que me lembra a mãe que foi embora levando com ela a última esquina.
O pombo sem pata dos olhos laranja na marquise. Um vaso quebrado tombado de flores secas na marquise. O pombo sem pata manca até o vaso de planta. “Pela primeira vez vejo um pombo mancar”, anoto na tarja da garrafa de vinho vazia que ela tomou com morangos no jantar. O pombo manca até o vaso quebrado tombado na marquise. Bica a copa de uma flor seca, na rua barulhenta de Copacabana, que em nada lembra o mar, apesar de ter. Anoto outra vez na mesma tarja da garrafa: “um pombo manco sem pata bicando a copa de uma flor seca num vaso quebrado tombado na marquise de um prédio feito de ladrilhos situado numa rua barulhenta de Copacabana me emociona mais do que 10.000 obras de arte dentro de qualquer museu contemporâneo”.
Largo o caderno. Fadado. Perdido. Sem chances. Os morangos! Com folha de jornal, recolho os morangos do chão, como se fossem as desculpas dos pedaços do meu próprio coração, apesar de ser apenas mais um tiro fatal, dentro de um peito que transborda ressentimento, loucura e paz. Levo o jornal com o que penso serem meus restos mortais, de onde escorre sangue demais, mas eu preciso achar que vinho, que ainda vivo, até a cozinha, onde adivinho a primeira impressão da cadeira de Van Gogh sobre a pia com vazamento e uma voz em holandês – e eu não entendo holandês – me sussurra o quanto pode ser miserável um sorriso por muito tempo, pelo que sorrio, pois, como já disse, não entendo.
Ela dorme e ronca na sala, tão minha de repente que imagino filhos, feridas, facadas. Então troco a rumba por Tchaikovsky, olho a sala no seu redor, vejo a garrafa tombada que me lembra o vaso quebrado tombado de flores secas na marquise, alimento de pombos e da noite dos infelizes, tudo como se morangos tivessem alma e o silêncio cauterizasse as cicatrizes.
Talvez seja sina sabida sozinha cortina cerzida sem sombra de dúvida seria outra vez uma garrafa de Concha y Toro, leio na tarja onde anoto meus sonhos, virada sobre os respingos sobre o telefone analógico azul-senão-seria-cinza. Do outro lado da sala, perto da porta de saída e entrada, entendo por fim a explicação da vela, cuja chama navega em ondas de sombra e luz e dúvidas e mistérios, trazendo em si a distância que separa dois corpos náufragos à deriva, tão juntos, tão suplicantes que, assim como a chama da vela vacila, o que vejo escorre pelos lados do que nem sei se sinto ainda. E acabou a garrafa de vodca. Quando vou dormir.
Não, não vou dizer isso ainda. Ou será que não eram morangos? Ou será que não éramos ela e eu e sim mais um começo de mais um adeus. Não. Eram mesmo morangos, mas que importa agora, se antes de começar já perdi a luta, abri a guarda, e nem tenho mais alma, muito menos coração, a não ser por aquela bola de carne gordurosa, que é onde depositamos todas as nossas esperanças e desculpas, porque de fato não existem, ninguém nunca os viu, alma e coração, a não ser em compota. Então dizemos que é ali que está o que não sabemos explicar. O diabo com isso! Estou sozinho escrevendo, não que alguém vá ler um dia, nem me importa. Perguntei a ela assim que ela caiu por detrás da porta, ao me deixar entrar com um sorriso, sobre a poça de bílis: quer que eu vá embora? Não, por favor, fique, disse o mar de Copacabana, durante a noite toda, com suas rajadas de onda. Pois fiquei, indo e vindo da cozinha, atrás da vodca, “termino a garrafa e me jogo pela janela para ficarmos quites”. Mas sentei na janela, sob a luz de uma sobra de vela, e, ah! como quis ficar ali para sempre, ouvindo as vozes do paraíso, observando na marquise o movimento de um pombo sem uma das patas, aqueles olhos alaranjados e indecisos, como os meus que, apesar de não serem laranja, mesmo que ninguém entenda, filtram as coisas em azul-turquesa. E as vozes são do paraíso mesmo, não, agora é Alceu Valença, minto, Elis Regina, que me lembra a mãe que foi embora levando com ela a última esquina.
O pombo sem pata dos olhos laranja na marquise. Um vaso quebrado tombado de flores secas na marquise. O pombo sem pata manca até o vaso de planta. “Pela primeira vez vejo um pombo mancar”, anoto na tarja da garrafa de vinho vazia que ela tomou com morangos no jantar. O pombo manca até o vaso quebrado tombado na marquise. Bica a copa de uma flor seca, na rua barulhenta de Copacabana, que em nada lembra o mar, apesar de ter. Anoto outra vez na mesma tarja da garrafa: “um pombo manco sem pata bicando a copa de uma flor seca num vaso quebrado tombado na marquise de um prédio feito de ladrilhos situado numa rua barulhenta de Copacabana me emociona mais do que 10.000 obras de arte dentro de qualquer museu contemporâneo”.
Largo o caderno. Fadado. Perdido. Sem chances. Os morangos! Com folha de jornal, recolho os morangos do chão, como se fossem as desculpas dos pedaços do meu próprio coração, apesar de ser apenas mais um tiro fatal, dentro de um peito que transborda ressentimento, loucura e paz. Levo o jornal com o que penso serem meus restos mortais, de onde escorre sangue demais, mas eu preciso achar que vinho, que ainda vivo, até a cozinha, onde adivinho a primeira impressão da cadeira de Van Gogh sobre a pia com vazamento e uma voz em holandês – e eu não entendo holandês – me sussurra o quanto pode ser miserável um sorriso por muito tempo, pelo que sorrio, pois, como já disse, não entendo.
Ela dorme e ronca na sala, tão minha de repente que imagino filhos, feridas, facadas. Então troco a rumba por Tchaikovsky, olho a sala no seu redor, vejo a garrafa tombada que me lembra o vaso quebrado tombado de flores secas na marquise, alimento de pombos e da noite dos infelizes, tudo como se morangos tivessem alma e o silêncio cauterizasse as cicatrizes.
Talvez seja sina sabida sozinha cortina cerzida sem sombra de dúvida seria outra vez uma garrafa de Concha y Toro, leio na tarja onde anoto meus sonhos, virada sobre os respingos sobre o telefone analógico azul-senão-seria-cinza. Do outro lado da sala, perto da porta de saída e entrada, entendo por fim a explicação da vela, cuja chama navega em ondas de sombra e luz e dúvidas e mistérios, trazendo em si a distância que separa dois corpos náufragos à deriva, tão juntos, tão suplicantes que, assim como a chama da vela vacila, o que vejo escorre pelos lados do que nem sei se sinto ainda. E acabou a garrafa de vodca. Quando vou dormir.
2 comentários:
abacaxi e vinho...
gostei pra caralho. principalmente a coisa do pombo na marquise e as repetições de um mesmo momento visto em instantes diferentes. bom mesmo.
Postar um comentário