Durante um mês inteiro, sempre às quartas-feiras. No que dormia, reparava na solidão escondida numa caixa enrolada em laço de fita numa das mãos do negro sentado no ponto de ônibus. Na outra mão um vaso com apenas uma flor vermelha. Não sabia distinguir que flor. Mas ela estava ali – a solidão, pura e eterna – na canção que assobiava o negro tristemente, sobrancelhas atiçadas, olhos baixos na sua flor vermelha.
Em momentos de grande perturbação ou convicção irredutível, é importante sonhar. A fumaça espessa de um Gold Flake numa varanda sem luz, onde se ouve o rangido de uma rede em movimento. Um homem gordo, olhos sanguinários, ou talvez apenas exaustos, mas bem abertos, na varanda coberta de ladrilhos à beira do Oceano Atlântico, escuta Woody Guthrie muito baixo numa vitrola de madeira: garrafa de Bell’s rola pelo chão com a força da brisa do mar, depois pára e roda para trás. Um colibri se pronuncia de 8 em 8 segundos, três duplos e curtos, um longo e sofrido. Ao longe, coqueiros, dunas, o infinito crepitante, a morte comendo pelas beiradas o que não se sabe sobre a vida, mesmo quando se vive, justo quando se engana. De repente, um fio de saliva desliza pela boca aberta do ronco do mundo: um fino fio infantil esculpi o rosto do gordo sonolento.
O mesmo colibri, agora morto e depenado, esmagado no asfalto. Um ioiô rolando para debaixo da mesa. Uma mão batendo na janela quando neva lá fora e o mundo derrete por dentro, dentro de cada um. Pessoas de preto se aproximam num ritmo de procissão, em círculos apontam dedos, perdem a compostura e se avançam umas nas outras como hienas famintas quando, de repente, um relógio do Batman jogado pela janela da cozinha, uma mão que lhe ensaboa as costas, um chinelo velho de borracha, uma unha comida presa num casaco de brim, uma grande montanha de pedra que ouve os barulhos da Terra e se cala, no formato de uma cobra naja instigada.
Por quilômetros se estende um cafezal. O vento dá suas coordenadas. Passos enganados por sussurros. Uma coxinha de galinha dentro de uma cesta de palha. Lulu Santos, um vestido velho de chita, Lulu Santos?, dois cachorros grudados pelo rabo, Vaguinho, o filho do caseiro... Vaguinho? E então, a proibição. Se vira na cama para tapear o ronco.
Dez minutos em branco.
Um casal dança numa gafieira, noite de meio de semana na Lapa, completamente só, enquanto toca “Formosa” num gramofone infestado de cupins: a mulher que dança é cega, usa óculos escuros, o homem parece feliz, sorri, quando no fundo espera que alguma coisa mude rápido. Mas não existe mais ninguém na rua e a cega chora no seu ombro.
Uma menina de olhos grandes e vidrados, que num belo dia de sol se senta em frente a ele na padaria, ele comendo um pão com média e lendo “Paris é uma festa”, imaginando o quanto nos resta, e ela chega bem perto, boca aberta num sorriso abobado, os olhos decididos dos bem loucos, cara muito pálida, intenções lentas e fulminantes.
- Posso me sentar? – ela diz, logo depois de se sentar.
Arranca o livro das mãos dele.
- Esse daí se matou – ela diz com muita naturalidade, mas tremendo.
- Você gosta? – ele diz.
- Dele ou do suicídio? – ela pergunta respondendo ao mesmo tempo, depois acende o cigarro torto num arco.
- Dele. Hemingway.
- Gosto de você. Mas estou realmente muito atrasada – ela diz e se levanta abruptamente, tira um papel da bolsa, senta outra vez.
Ele vê um pente feito com casco de tartaruga. Pensa: “deve ser bipolar, porque ativista não é”. Ela arranca um canhoto de cheque, tira uma caneta barata da bolsa e começa a escrever usando Hemingway como apoio para o papel.
- Olha – ela diz ao lhe entregar o papel. – Me liga. Agora estou mesmo atrasada. Mas quero te ver outra vez. Daí te falo o que eu acho do Hemingway de verdade. Mas agora não. Liga sim. Se não quisesse não te daria meu número.
Avança sobre a mesa. Um pão com manteiga pisado no chão. Sapeca um beijo na boca dele. Um beijo nu. Vai embora.
Outra vez se vêem na rua. Não se falam. Ela finge bater fotos. Aponta a máquina para cima, mas não se fotografa o canto dos passarinhos. Parece preocupada, certamente mais gorda, quase saudável. Ele ri e pensa: “a menina com transtorno bipolar que lê Hemingway”.
Em momentos de grande perturbação ou convicção irredutível, é importante sonhar. A fumaça espessa de um Gold Flake numa varanda sem luz, onde se ouve o rangido de uma rede em movimento. Um homem gordo, olhos sanguinários, ou talvez apenas exaustos, mas bem abertos, na varanda coberta de ladrilhos à beira do Oceano Atlântico, escuta Woody Guthrie muito baixo numa vitrola de madeira: garrafa de Bell’s rola pelo chão com a força da brisa do mar, depois pára e roda para trás. Um colibri se pronuncia de 8 em 8 segundos, três duplos e curtos, um longo e sofrido. Ao longe, coqueiros, dunas, o infinito crepitante, a morte comendo pelas beiradas o que não se sabe sobre a vida, mesmo quando se vive, justo quando se engana. De repente, um fio de saliva desliza pela boca aberta do ronco do mundo: um fino fio infantil esculpi o rosto do gordo sonolento.
O mesmo colibri, agora morto e depenado, esmagado no asfalto. Um ioiô rolando para debaixo da mesa. Uma mão batendo na janela quando neva lá fora e o mundo derrete por dentro, dentro de cada um. Pessoas de preto se aproximam num ritmo de procissão, em círculos apontam dedos, perdem a compostura e se avançam umas nas outras como hienas famintas quando, de repente, um relógio do Batman jogado pela janela da cozinha, uma mão que lhe ensaboa as costas, um chinelo velho de borracha, uma unha comida presa num casaco de brim, uma grande montanha de pedra que ouve os barulhos da Terra e se cala, no formato de uma cobra naja instigada.
Por quilômetros se estende um cafezal. O vento dá suas coordenadas. Passos enganados por sussurros. Uma coxinha de galinha dentro de uma cesta de palha. Lulu Santos, um vestido velho de chita, Lulu Santos?, dois cachorros grudados pelo rabo, Vaguinho, o filho do caseiro... Vaguinho? E então, a proibição. Se vira na cama para tapear o ronco.
Dez minutos em branco.
Um casal dança numa gafieira, noite de meio de semana na Lapa, completamente só, enquanto toca “Formosa” num gramofone infestado de cupins: a mulher que dança é cega, usa óculos escuros, o homem parece feliz, sorri, quando no fundo espera que alguma coisa mude rápido. Mas não existe mais ninguém na rua e a cega chora no seu ombro.
Uma menina de olhos grandes e vidrados, que num belo dia de sol se senta em frente a ele na padaria, ele comendo um pão com média e lendo “Paris é uma festa”, imaginando o quanto nos resta, e ela chega bem perto, boca aberta num sorriso abobado, os olhos decididos dos bem loucos, cara muito pálida, intenções lentas e fulminantes.
- Posso me sentar? – ela diz, logo depois de se sentar.
Arranca o livro das mãos dele.
- Esse daí se matou – ela diz com muita naturalidade, mas tremendo.
- Você gosta? – ele diz.
- Dele ou do suicídio? – ela pergunta respondendo ao mesmo tempo, depois acende o cigarro torto num arco.
- Dele. Hemingway.
- Gosto de você. Mas estou realmente muito atrasada – ela diz e se levanta abruptamente, tira um papel da bolsa, senta outra vez.
Ele vê um pente feito com casco de tartaruga. Pensa: “deve ser bipolar, porque ativista não é”. Ela arranca um canhoto de cheque, tira uma caneta barata da bolsa e começa a escrever usando Hemingway como apoio para o papel.
- Olha – ela diz ao lhe entregar o papel. – Me liga. Agora estou mesmo atrasada. Mas quero te ver outra vez. Daí te falo o que eu acho do Hemingway de verdade. Mas agora não. Liga sim. Se não quisesse não te daria meu número.
Avança sobre a mesa. Um pão com manteiga pisado no chão. Sapeca um beijo na boca dele. Um beijo nu. Vai embora.
Outra vez se vêem na rua. Não se falam. Ela finge bater fotos. Aponta a máquina para cima, mas não se fotografa o canto dos passarinhos. Parece preocupada, certamente mais gorda, quase saudável. Ele ri e pensa: “a menina com transtorno bipolar que lê Hemingway”.
Então acorda completamente suado e de pau duro.
Um comentário:
Mui legal, Leo. Esse tipo de psicose nos sonhos sempre me é bem-vinda.
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