16.10.05

"Jura?"

O termo talvez seja recente. Veja uma mulher bonita e descompromissada, a não ser com a própria neurose, e diga a ela, se você achar o suficiente, a julgar pelas medidas, suas linhas, que nessas horas são as medidas do mundo: “você é a coisa mais linda”:

Resposta: “Jura?”

Você pode esperar um tapa, você pode esperar bolivianos voando dos telhados, você pode esperar gordinhos imaginários, cornos resignados, que pensam serem fortes o suficiente para não comerem ninguém, achando que vão comer aquela gordinha, ela que um dia, e ela sabe, já foi gostosa pra valer, sem olhar ninguém senão olho roxo, então se acostumou a olhar ninguém, se acostumou a esquecer, o que é o próprio gordinho sem pescoço, um comportamento moderno, modesto, olhar ninguém, nada atrativo, um erro político, uma função prática social, olhar ninguém e ver o mundo, antes fosse articulado, mas não, faz questão de provar sua masculinidade no poder da inação.

Carol, é claro. São duas. Uma eu poderia matar, porque ela gostaria. Outra – que é a mesma, apenas eu não sou mais eu mesmo depois de alisar a mão daquela desconhecida e de ter três dentes marcados na carne do meu dedo indicador – ficaria estatelada num carro antigo, Fiat 147, e o amigo, marido da outra, bandido e gordo, pobre homem que espera que a força lhe explique certas sutilezas, como a morte por exemplo, briga com sua atual mulher porque sua ex-mulher, a qual espancava com cinta, vejam bem!, estava ali também, e isso era certamente um motivo a mais para ser valente, além do quem sabe um pau que funcionasse diariamente, e o gordo caça nos bolsos cheios palavras que dizem “tenho uma mulher que tem uma mulher, deitada com a mão no rosto num Fiat 147, e eu na verdade não tenho mulher, porque se tivesse, como poderia estar brigando com ela por causa da minha ex-mulher – antes fosse dela! – que esteve aqui, ou será que estou brigando só porque minha barriga ficou pequena demais para comportar meu ego, tão enlatado quando salsicha em conserva, esse troço viscoso que sai dos poros nas noites de sábado?”.
E Carol. Fui vê-la cobrir o rosto deitada no carro. Porque queria ver a morte de perto. A morte tem olhos azuis. Batidinhas na janela. Ela apenas abre o olho e eu aceno. O olho dela, só um, porque dois ela sabe que matam mais rápido, são tão grandes que não dizem nada. Por que, vocês podem perguntar, eu aceno para ela? Seria obrigado a responder: porque ela se esconde e acha a vida bela, demais para colocar sua morte prática em questão. Não quer mudar de estratégia, agora que tem os olhos de fogo. E eu também acho a vida bela, do contrário não saía mais nas ruas. Mas me aperta o coração procurar beleza debaixo dos tapetes, ou num Fiat 147, para encontrar poeira ainda quente, ou então Carol tampando o rosto com olhos vivos exemplos da morte, uma canga de ontem na praia de Ipanema, pequenas varizes, como poemas de amor, sobre a cara. E o que poderia me tirar da cabeça a menina “MAIS LINDA”, quando eu disse a ela e ela apenas respondeu, sinceramente amuada, “JURA?”, mas, tudo bem, concordo com o que vocês estão pensando agora, se chegaram até essa linha, que, sim, esse texto não terá fim, já não tinha um propósito antes de começar, agora sai apenas porque assim me sinto mais convicto do que gostaria de dizer sobre Carol, já que dificilmente para Carol, mas quero marcá-la de algum jeito, aquelas marcas de cigarro no pulso direito, quero marcá-la como aquelas marcas de cigarro voluntárias num banheiro com cheiro de desinfetante barato, uma privada entupida fechada, ela em cima da tampa com o cigarro, se fazendo amar pela brasa, o que é a mesma coisa que tudo mundo faz, apenas ela faz porque não sabe. Isso se o gordinho não se tivesse interposto entre mim e ela, dizendo “Algum problema, amigo?”, e eu, “Não, quero ver um pouco mais a Carol, nenhum problema”, e ele, “Ela é maluca, doida das idéias, já matou um homem”, e isso é tão fácil de dizer quanto dizer que a vida é bonita dentro de um quarto com as cortinas fechadas, ou dentro de um livro, ou de um filme, tudo sem falar do que é a vida, grande demais para a beleza, como se a vida inteira não passasse de um quarto fechado, e a morte não passasse de Carol, enlouquecida, amaldiçoada, “jura?”, juro, me empresta um deus que eu te juro, e isso raramente digo. Não que seja grosseiro ou ante-clerical, apenas tenho poucas idéias de conversa na mesma hora em que quero estar com você: em suma, nunca coincidem o que penso e o que faço, o que é perigosíssimo, como o amor, não pela forma, jamais pelas inspirações, algo mais embaixo... É o que é, sem beleza nenhuma, pensem bem: é porque as grandes sacadas são, porque o que é dói sem pedir desculpas, e normalmente não corresponde ao que somos, e pensamos, o erro infinito, que me faz pensar se as “grandes sacadas” não passam de cama quente para a mortalha da humanidade... Não que me orgulhe em dizer isso... Se me orgulhasse deixava quieto... Mas é bem melhor do que todos os franceses que já conheci, com a exceção do francês belga que pagava cachaça sem parar de rir. E até hoje, olhando Carol no carro, espero Andréa, Lina, Claudilene, Fátima. Mas, como prometi, esse hoje não teria fim...

Um comentário:

Anônimo disse...

Eu lembro dessa menina no CRJ. Engracado que eu achava ela metida. Tinha a impressao de que ela se sentia a maior gostosa e por isso tinha uma postura prepotente. Na verdade eh louca, nada mais. Surpreendente. Um abraco.