10.9.05

"Até o último apito do cais"


Acabei de estourar uma espinha branca na testa. Estou no elevador sozinho, a cara enfiada no espelho embaçado, coberto pelas rajadas de luz de cada andar. O sangue desce devagar pela testa. O sangue não tem a cor que deveria ter. Giro a chave, entro. O telefone ficou sem tocar a semana inteira. Tudo o que um homem precisa para saber se é um homem é ser deixado sozinho. Acho que não sou um homem na maior parte do tempo. Sento na mesa da cozinha. As formigas rezam numa roda. A toalha é branca e vermelha e xadrez, existem frutas pintadas em potes no pano: cerejas, pêras, laranjas, framboesas. Agora estou olhando para baixo. Minhas coxas muito brancas com pêlos muito negros somente nas partes internas e a toalha xadrez pintada de frutas silvestres, juntas, formam uma cena triste e redentora: uma espécie de constatação. Mas é nessas horas que, em algumas noites, ou inícios de manhãs, quando o céu se aflige de laranja e o mundo faz menos barulho, ou nenhum, quando acordo, ou tento dormir, ou chego atrasado para mim mesmo, pouco importa, posso imaginar pequenas seqüências de vida e morte, e aquilo quase toca meu ombro por trás da toalha xadrez, como se fosse capaz de andar e falar:

Vejo o Quintana comendo arroz com ovo frito num hotel cor-de-rosa pago por um jogador de futebol aposentado. Vejo Hamsun contando os dias como lenhas cortadas só para que os ricos continuem sem ter o que contar. Ali está Beethoven num banheiro, molhado dos pés a cabeça, debaixo da pia, compondo uma serenata para o amor não correspondido da lua. Vinícius, Tom e Baden juntos cantam marchinhas de carnaval com duas garrafas de Stolichnaya vazias e uma de Amarula do meio pro final. Vejo um menino italiano que viria a ser o maior de todos os escritores de seu tempo, sem que ninguém soubesse disso, debaixo de uma ponte matando caranguejos nas pedras da praia com os olhos cheios d'água e a cabeça inchada e as mãos rasgadas por causa das farpas do amor entalado que ele não soube onde escoar a não ser em odes a garotas feitas de papel com olhos pintados e cigarrilhas grudadas no bico dentro do armário das ilusões em preto e branco nas páginas coladas pela ânsia da paixão. Mccullers prende a respiração presa a uma corrente de aço em alto mar dentro de um barquinho de papel que ela chama de solidão final ou cura para uma vida com olheiras. Silvia Plath é linda e nada mais que linda, perdida por um escroto chamado Hughes, com o lápis na ponta da língua antes de escrever sobre mais uma morte na forca da vida. Gide corre da família atrás de Wilde no deserto da Namíbia. Quem sabe Poe sem cuecas de roupão com um quarto de uísque debaixo do braço ateando fogo nas próprias vestimentas e nas ruas de Baltimore em pleno verão com apenas uma metade do bigode raspada. Ou Jack choroso beijando Cassady na boca enquanto o último dorme, ambos tingidos pela luz vermelha de um letreiro de néon onde se lê "Skinny Joe's Barber Shop"; e no banheiro Ginsberg se masturba com um poema de Whitman na mão. Huxley olhando as paredes verdes de néon e ficando cego sozinho na mansão de dez quartos em Wrigwood, chorando pelo suicídio do irmão Trev antes de voltar a tentar David Hume, sem conseguir dar mais um passo. E mrs. Woolf nada quando nada mais é do que nada, um rio gelado de pedras cercado de almas por todos os lados. Dos Passos tira meleca de meia, cueca e sapatos, suspensório esgarçado e sem camisa, enquanto lê o Wall Street Journal em frente a tiras de bacon ressequidas, num jardim com vista para as montanhas rochosas, virando a casaca sobre as antigas questões comunistas.

E são tantas imagens juntas que quase me sinto forte, com uma espécie de norte...

Como quando Rembrandt gastou seus últimos florins por uma puta barata de quem faria um retrato apenas para se lembrar de Sáskia, mas sua Sáskia teria morrido de parto e não voltaria mais. Ou Gauguin como Anthony Quinn dizendo a Van Gogh como Kirk Douglas que é fácil se acomodar no fracasso, ainda mais quando se ganha comida e teto do irmão para isso, pelo que o holandês tentaria matá-lo e, não conseguindo, mataria a si mesmo com deuses e corvos e milhos e cipestres: uma orelha na lata do lixo. E a última imagem poderia ser minha pescando um marlin azul de quatro metros ao lado de um sujeito gordo com uniforme cáqui chamado Ernie, que grita e fuma um charuto sem parar de reclamar do vento e da corrente que vem do sul. Ou do dia em que Miller andou de bicicleta por Clichy pela primeira vez e perdeu o chapéu que Nin encontrou mas que não soube usar. Algo como a última curva de Camus. O prato de macarrão que Rossini comeu depois de terminar o seu “Guilherme Tell”. Dostoievski conhecendo a morte, rindo da cara dela e o governo o mandando esfriar a cabeça na Sibéria. Lampedusa criando a Sicília. Ellroy se embebedando com anti-séptico bucal e murmurando pelas ruas atrás da própria mãe. Dylan Thomas tomando um gole da sua lager numa mesa de mogno, confins de Gales, algo lhe aperta o coração e ele escreve “do not go gentle into that good night”, depois tem um enfarte. Céline toca um realejo bêbado num cais africano com as mãos sujas de sangue. Gertrude na cama por cima da Toklas. Picasso por baixo. Pound coloca Hemingway no chão com um direto de direita. Kafka com as calças molhadas porque mijou na cama. Proust tentando entender um passado sem futuro.

Tem dias que vejo o Leminski numa tarde escura de quimono e chinelos tomando o último gole de conhaque para escrever sobre sua morte. Acima da sua cabeça há um quadro com uma menina loira vestindo uma gravata amarela ajoelhada diante do túmulo do Maiakovski. Lima Barreto toca a campainha do Pinel, muito alinhado, atrás de um quarto para repouso. E Joyce joga a moeda diante da lareira: se der cara queima o Ulisses, se der coroa se queima.

É nessas manhãs escuras ou de noites claras sem alento que um apito ressoa de um cais abandonado muito longe e escorre por dentro dos meus ouvidos e me leva voando para o mar atrás de lembranças nas quais fico por um minuto ou dois, nada mais do que isso, para depois poder desperdiçar tudo aquilo que às vezes chamo de amor - bicho esquisito – por não ter um nome melhor, e que por mais um minuto dá forma ao vômito inevitável da paz. E ali estão eles comigo. Não me pedem nada nem me amam ou são meus amigos. Não falam comigo, não dizem o que devo fazer nem me xingam de nomes. Mas me deixam beber junto deles. Fico quieto como um urso satisfeito. Tímido. Dou meu primeiro gole do vinho – vira vida a bebida.

Ainda estou na cozinha, diante da toalha xadrez, vendo as formigas. Mas nada vai acontecer até que eu tome meu último gole do vinho deles, depois de brindar pelo meu último apito.

Um comentário:

Anônimo disse...

A canção me perguntava: QUEM ROUBOU A NOSSA CORAGEM?
Eu lhe respondi:
PORQUE coragem, PARA QUE?! Se vivemos de trocas, trabalhar e receber, cd vez + somos DESPROVIDOS de emoções, apesar da RAIVA aumentar, ... pq são elas que fazem A MUDANÇA SUBJETIVA, interna para externa.
E NÃO ao contrário.
Estamos numa passagem de sentir "emoções" para os outros através da mídia (TV, jornal, cinema, revista, livros, novelas, internet, músicas ...) e as nossas?! o meu EU, e o que eu sinto (?) verdadeiramente !!!!!!!!!!!!!!!!!!!
... ISTO ficou de lado ...
Quando perguntam: Qual é a sua OPNIÃO?????
Ficamos assustados, talvez horrorizados ...
PQ as opniões, ALIENADAMENTE, provém de outros ... e quando sentimos "TRANQUILOS" para responder é pq fomos muito bem TREINADOS pelos outros ...
Estamos na ERA de entrega à ROBOTIZAÇÃO, tudo tem que estar CERTO, pq eles não erram ... ao contrário de nós seres HUMANOS, contraditórios!