Todo domingo de noite, como bom católico, faço uma reza para a semana que começa.
A reza diz assim, mais ou menos:
Aprenda a sorrir de graça.
Diga não, até mais tarde,
Quando te convidarem
E você não quiser.
Comece a se mexer mais.
Ande na praia de manhã,
Três manhãs por semana,
Comece andando depois passe gradativamente para o trote.
Isso vai te fazer bem e assim você vai olhar o mundo melhor.
Não fique à procura de amigos. Amigos não procuram nada. Amigos acham.
Molhe o rosto na água gelada, beba a água lentamente e depois olhe para o céu azul – mesmo se ele estiver cinza – como se fosse sempre a última vez.
Tome água de coco. Dizem que faz bem para o intestino. Aliás, vá ver que porra é essa de hipersensibilidade de cólon, que te faz cagar mole.
Você não precisa ser mau, mas também não precisa ser um idiota:
tente achar um meio-termo.
Não adianta olhar pela janela se você não souber enxergar através dela.
Pense positivamente em relação às pessoas, antes que te julguem um completo babaca.
Porque quando isso acontecer, dificilmente vão mudar de opinião.
Pense nas mulheres como seres cheios de amor e não como animais frios e insensíveis onde você despeja esperma uma vez por mês.
Entre numa igreja bonita cheia de estátuas de pedra uma vez por mês.
Fique ali dentro durante três minutos
e tente, nesse meio-tempo,
não ter nenhum pensamento absurdo.
Ouça um pouco mais de Nancy Sinatra sem precisar sonhar com ela te pisoteando
dentro daquelas botas pontudas.
Pare de pensar nos resultados antes de saber um mínimo das causas.
Dê no mínimo quinze horas semanais para Johann Sebastian Bach.
Aprenda a acreditar no verdadeiro espírito germinal,
segurando a respiração por dez segundos antes de sentir
vontade de matar certas pessoas.
Pare de deixar para mais tarde e faça com que não seja tarde.
Mesmo que seja só para ficar olhando a tarde passar,
que isso seja feito agora,
com todo o coração que uma mulher entrega a um homem quando ele nasce.
Tente rir um pouco mais de si e rir um pouco menos para si.
Esqueça a filosofia! Pense no mundo apenas como uma bola de vida,
e contente-se por estar vivo dentro dela.
Beba menos, durma mais, acorde mais cedo, pense em mudar de emprego, agora!
Aprenda a dar bom dia sem esperar um bom dia de volta, apenas para variar.
Se for um vagabundo, lembre do que disse o norueguês:
“Um vagabundo toca em surdina quando chega aos cinqüenta anos. Mas por que ele toca em surdina? Talvez consiga exprimir meu pensamento assim: se se chega tarde demais, no outono, ao bosque onde crescem os pomos silvestres, paciência, é tarde demais! Se se perde o dom da alegria e a faculdade de sorrir para a vida, paciência, é tarde demais! Para que lutar? Rir constantemente prova certa falta de capacidade cerebral; viver numa permanente satisfação de tudo e de si próprio é quase inferior. Mas bons momentos todos os têm. Um condenado que atravessa as ruas da cidade sentado na carroça que o conduz ao patíbulo, ao sentar no banco, um prego que o incomoda, desvia-se e passa a sentir-se mais à vontade. Em todas as situações há uma compensação (...) Vagabundo, esse não quer senão aquilo que a vida lhe oferece. Se lhe falta o pão, a casa, a roupa e a lareira, sofre, mas não se revolta porque sabe que se uma coisa não aparece, aparece outra. Se todas faltam, não se revolta, toma a responsabilidade sobre si. É triste, às vezes, curvar a cerviz aos golpes do destino; envelhece, torna os cabelos horrorosamente grisalhos, mas um vagabundo agradece a Deus a vida, que às vezes é tão boa de viver”.
E depois não se esqueça que ainda faltam vinte e sete anos para isso.
Hoje acordei depois de uma noite boa de sono, estava disposto.
Ao me espreguiçar fui obrigado a sujar as calças devido a minha provável hipersensibilidade de cólon, que pode também ser traduzida como “bebida demais”. Minha testa tinha inchado, quando eu me vi no espelho do banheiro. Tinha ali uma bela cicatriz que da noite pro dia havia enegrecido pavorosamente. Eu estava com uma cara assassina. Gostei da cicatriz. Fui correr na praia depois de me lavar.
Continuo em boa forma, apesar do formato de rolha: ida e volta na orla do Flamengo, pela areia, tudo bem que num ritmo de atleta para-olímpico de quinta categoria, mas sem bufar.
Voltei para casa cansado, mas não exausto, e pensei: “meu deus, a quem eu estou querendo enganar?”. Dobrei a esquina da minha rua e tropecei num mendigo muito velho que estava deitado ali, metido num boné vermelho abarrotado e nuns trapos. Caí no chão com a queda e, mãe de Cristo, que fedor horroroso! O velho gemeu quando eu sentei o pé na sua costela, o que me fez cair, pois ele estava deitado na virada da rua, bem no meio da calçada, e eu vinha rápido, já um pouco assado na virilha, louco por um banho gelado. Me levantei sem reclamar de nada, me lembro que ainda tentei sorrir para aquilo. Bati os joelhos com as mãos e, quando fui bater as mãos, elas estavam manchadas de sangue. Um sangue escuro, parecia vinho. Aquilo me deixou meio tonto, porque depois ainda olhei pros joelhos, um levemente arranhado, mas o outro com pedaços de pele triturados e sujos misturados com terra. Olhei para o mendigo, que gemia na minha frente, sem no entanto dizer uma palavra. Fui andando até ele. Sentia o cheiro do meu próprio sangue e, misturado com o fedor terrível do mendigo, era um cheiro de fazer vomitar o eremita mais desapegado de toda a materialidade do mundo. Não era cheiro de sujo, era cheiro de doença, o homem fedia a morte, por isso apenas conseguia gemer. Quando me aproximei, pude ver. Um dos pés do sujeito era uma enorme pata, tomada pela elefantíase. Não consegui olhar por muito tempo mas, pelo que pude ver, ele tinha dois dedões em vez de um só no mesmo pé. Era dali que saía o fedor. Dali que vinha a morte. Olhei para ela de frente. Juntei o mendigo do chão pelos braços e o encostei na mureta de um edifício. Ele se assustou e chegou a se debater, mas depois cedeu e se largou sobre meus braços, e eu quase vomitei. Ele olhou pra mim então – parecia que ia chover – com uma cara retorcida, um bafo terrível de cachaça. Disse: “me dá dois real pra eu comprar um pão”. Não era nem mesmo um pedido. Era uma frase com nenhuma entonação. Disse a ele: “Você vai gastar isso tudo com cachaça que eu sei”. Ele me olhou, sua cara tinha mudado de expressão, passou para uma cara de vítima. Disse: “prometo que não, por tudo que é mais sagrado”. E o mendigo se virou um pouco e puxou a perna que tinha o pé inchado com uma das mãos. Disse: “olha aqui... você acha o que disso daqui?”. Eu não disse nada. Tentei fazer como na reza, mas o céu cinza era cinza mesmo e não azul. Então prendi a respiração por dez segundos, e tentei não odiar o mendigo e a mim mesmo, por não saber como lidar com determinada situação. Deixei dois reais enfiados no meio dos trapos do homem e o enrolei novamente. Olhei para os lados, não havia ninguém na rua, nenhum som, os passarinhos, todos parados como numa marcha fúnebre, me olhando de cima das árvores sem folha, os carros, até mesmo eles haviam parado de passar. Acredito que o mundo parou e senti a morte do meu lado, vindo buscar aquele homem. Cambaleei até em casa e sentei em frente ao computador. O sangue no joelho havia coagulado e estava escuro como o nevoeiro antes do fim do universo. Ninguém me amava do outro lado do mundo. Era segunda-feira outra vez, e ainda faltavam sete dias para a próxima reza. Os homens matavam porque eram malucos e justificavam porque era a lei.
E não fui eu quem disso isso pela primeira vez.
3 comentários:
muito foda leo. bem escrito pra caralho. a parte final é estranhamente emocionante, uma mistura de amor e ódio. quem é esse norueguês? ele tem uma filosofia de vida que mais parece com um poema do li po. continue rezando que talvez algum dia segunda-feira parecerá sexta.
esse é um cara chamado Knut Hamsun. Ele ganhou o nobel de literatura num ano difícil: 1920. quem gostava muito era o Bukowski. O trecho é de um livro que eu tenho dele, chamado: "Um vagabundo toca em surdina". Li esses dias e, de fato, é extraordinário: bem essa coisa que tu disse de ficar entre o amor e o ódio. talvez assim seja melhor do que o pendulo do Schooenhauer: do desejo ao tédio.
misturar poesia e prosa e texto de outro escritor ficou muito foda. o texto e o tema estão de altíssimo nível. li esse texto com uma facilidade que eu só encontro no buk e no fante. o texto me lembrou uma verso do Pound "Nec spe Nec Metu", sem esperança nem medo.
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