16.8.05

Lançamento em DVD – “O Homem Elefante”



Lançado agora em DVD, “O Homem Elefante” (1980) de David Lynch conta a história real do inglês John Merrick (1862-1890), portador de uma doença que deformou de maneira irreversível 90% do seu corpo, chamando a atenção do anatomista Frederick Treves, vivido nas telas por Anthony Hopkins, quando o médico encontra Merrick num circo de aberrações, onde se alimenta apenas de batatas e é seguidamente espancado. O aspecto de Merrick, segundo dr. Treves, não é somente grotesco, mas um fenômeno da anatomia que precisa ser estudado. John tem o crânio dilatado em grandes bolas ósseas protuberantes, metade do rosto completamente desfigurando com sobras de pele por toda a parte, uma bronquite aguda que o faz respirar como se fosse uma besta assassina, além de grossas saliências escamosas expostas na espinha dorsal, que dão a sua pele a aparência de uma couraça. As únicas partes do seu corpo que escapam da deformidade são, por ironia, suas genitálias e seu braço esquerdo. O filme todo é baseado nos manuscritos do dr. Frederick Treves, responsável por tirar Merrick do circo de horrores onde vinha sendo o ganha-pão de Mr. Bytes, um mercenário beberrão interpretado magistralmente pelo ator inglês Freddie Jones em cada uma de suas expressões faciais. John Hurt tira de letra a dificuldade de encarar um personagem tão complexo e dolorido quanto Merrick, sem contar com a pesadíssima maquiagem que lhe cobre rosto e corpo, desenhada por Christopher Tucker. Fecha o elenco principal a atriz Anne Bancroft, com a beleza atemporal que poucas atrizes conseguem ter (Lauren Bacall, Rita Hayworth, Katherine Hepburn, Elizabeth Taylor, Ava Gardner, Sonia Braga são outras do mesmo calão). Bancroft no filme é Mrs. Kendal, diva do teatro inglês e outra importante personagem na vida de Merrick, depois que se conhecem por intermédio do dr. Treves. “O Homem Elefante” é um filme indispensável e talvez o mais maduro de Lynch – equilibrado entre a monotonia de “História Real” e o nonsense de “Cidade dos Sonhos” –, porque fala de amor e ódio sem a intenção de domesticar sentimentos. Um filme duro nas imagens mas quase ingênuo – e por isso mesmo belíssimo – na estrutura, mostra tudo que um ser humano é capaz de sentir, todas as suas ambigüidades, desvios de caráter, quando exposto às situações mais extremas: o que só um cineasta com muita sensibilidade poderia conseguir.
Algumas cenas inesquecíveis de “O Homem Elefante”:
- Quando Mrs. Kendal (Anne Brancroft, a eterna Mrs. Robinson de “A primeira noite de um homem”) recita Romeu e Julieta aos prantos com John (Hurt) Merrick (o perseguido de “1984”). Eu contei: foram apenas 4 piscadas durante a cena, que tem por volta de cinco minutos. Por fim, Mrs. Kendal, emocionada com o instinto dramático de Merrick, olha para seu rosto desfigurado e diz: “Você não é o Homem Elefante... Você é Romeu!”.
- O close do rosto dr. Frederick Treves (Hopkins) quando vê o Homem Elefante pela primeira vez em sua jaula, durante uma apresentação particular que Mr. Bytes (Freddie Jones, pra mim o melhor ator do filme) faz do seu “tesouro”, como se refere ao rapaz de 21 anos que foi pisoteado por um elefante ainda no útero da mãe.
- A cena da crise moral do dr. Treves quando, depois de livrar John Merrick do circo de horrores de Bytes, se pergunta se não está fazendo a mesma coisa que o mercenário, expondo seu paciente para os alpinistas sociais da alta classe londrina e para monoculosos doutores da cúpula médica da cidade, que aparecem para conhecer a mais nova celebridade – antes presa numa jaula, agora presa a xícaras de chá e encontros banais – e não deixam de entortar seus narizes com nojo, mas felizes por aparecerem nos noticiários.
- Quando Merrick, convidado por Mrs. Kendal, conhece os palcos pela primeira vez. A montagem é dos momentos mais altos de Lynch no realismo fantástico que caracteriza suas produções mais lisérgicas (Cidades dos Anjos, Veludo Azul, Twin Peaks).
- A farra que um porteiro aproveitador do hospital promove no quarto de Hurt, trazendo uma multidão de bêbados e putas para embebedá-lo. Talvez seja a cena mais asfixiante, junto com aquela em que Mr. Bytes açoita Merrick em cima de um picadeiro com uma bengala, numa apresentação em Paris, quando ele já não consegue mais ficar em pé devido a sua doença degenerativa e cai exausto no chão, e pelo que o público francês cospe no palco e Bytes joga Merrick dentro de uma jaula com babuinos furiosos, como castigo.
- A passagem para a morte construída por Lynch é das cenas mais bonitas que já vi no cinema. Feita de uma viagem por estrelas e a mais antiga lembrança positiva das palavras da mãe de Merrick, dizendo que “nada jamais morrerá”, quando ele finalmente termina de construir sua maquete da Saint Philip’s Cathedral no seu quarto de hospital e resolve, por fim, dormir com a cabeça encostada no travesseiro, como qualquer pessoa normal.
- A trilha, com música original de John Morris, é exata: mistura suspense com mambembe e dá o tom do filme. A reconstituição em PB da Londres do final do séc. XIX também é muito bem feita, com suas fumaças e sombras e vazamentos de esgoto.
* O filme é pessimista em relação aos homens, mas não em relação a todos os homens, além do que é um filme que exige do espectador uma certa conduta moral que, de início, não conseguimos ter, porque tudo nos parece de imediato exagerado, maniqueísta, mas no fim vemos que somos apenas mais um exemplo da crítica que o filme se propõe a fazer da sociedade, que usa desculpas do tipo para se afastar de determinadas realidades, por serem insuportáveis, como a deficiência e o isolamento social por que passam pessoas como John Merrick que, no fim, mais parece um Oscar Wilde Elefante, com seu anel no dedo mindinho e seu cabelo Gogol-channel. Primeiro vemos Merrick como aberração, o suspense e a música antecipam essa sensação. Em seguida, ao nos acostumarmos com sua presença física, o vemos com piedade (por exemplo, na cena em que Merrick revela ao médico que decepção ele deve ter sido para sua mãe quando nasceu). Mas Lynch provoca um processo de auto-análise no espectador, então, no fim vemos que a piedade é um passo para exploração, dissimulação e alívio de consciência. O argumento do “dono” de Merrick, Mr. Bytes, quando tenta convencer o médico a liberar “seu tesouro” de volta ao seu Freak Show, é: “O que ele vai fazer? É uma aberração, coitado. Somos sócios. Eu ajudo ele e ele a mim. Nós entendemos um o outro”. E no fim, John Merrick chega até a ficar bonito, quando esquecemos de ter pena dele para vermos o quão interessante, apesar de utópica, é sua personalidade desprovida de maldade, talvez por tanto ter sofrido maus tratos – o que, convenhamos, é a coisa mais difícil de acreditar no filme. Um filme que pesa nos ombros, porque sentimos um pouco de tudo o que ele representa de bom e de ruim no comportamento humano, através da nossa própria experiência ao ver John Merrick pela primeira vez e pela última.

3 comentários:

Anônimo disse...

Leo, tá bem bacana sue blog.
E o filme é-do-caralho mesmo.

Anônimo disse...

fui eu a anônima acima.

leonardo marona disse...

é vc, mary lee? que honra...
gostou mesmo? ainda não sei mexer direito. ainda não sei se saberei.