26.8.05

O tenor de sete mil e quinhentos reais



Entrou no carro acendendo um cigarro, como que invadindo – e estava de fato.
“Você fica aonde?”, perguntou o dono do carro,
já um pouco bêbado, mas um bom sujeito, bem suado.
“Moro em Olaria”, disse de olhos baixos o rapaz do cigarro.
“Te deixo ali quase na Central”.
“Tá legal”.
Era um sujeito meio pardo, calado, jaqueta de couro, sapatos apertados, com as solas
furadas, reclamava que lhe doía um calo, porque não tinha outro jeito, tocava numa
banda de pagode, só pra ganhar dinheiro, mas curtia os caras mesmo assim,
torcia por eles, “apenas não era a onda, saca?, meu lance é mais jáish* mesmo”.
“E tu fica por aí andando com esse sax niquelado, sem carro?”
“Espero que só até o fim do ano”.
“Vai fazer o que até lá?”
“Tenho uns planos...”
E então falou de influências, Coltrane e outros dois saxofonistas brancos.
Eu conhecia vagamente o Coltrane e nunca tinha ouvido falar nos brancos.
Ficamos portanto com Coltrane...
“Teve uma que não teve jeito... eu não acertei”
“Não era In a Sentimental Mood”
“Duke e Coltrane, isso!”, disse o Joel
– aliás, esqueci de dizer que o nome do cara era Joel,
e que tinha um sax tenor de sete mil e quinhentos reais
dentro de uma caixa sem espuma, e o sax era niquelado.
Ouro demais para os olhos de um homem...
Era como uma mulher de ouro plena de si dormindo abraçada nas pernas.
Uma mulher dourada e plena e delicada que ainda era capaz de assobiar.
Disse a ele: “Se eu tivesse um sax como esse, ia preferir um meio fosco”.
“Gosto do meu assim”,
ele disse gentilmente,
e correu com os dedos
a couraça sem espuma
que guardava seu segredo

junto com sua alma dentro.

* jáish é jazz em caetanês.

24.8.05

Duas hipóteses viáveis pr’um pervertido sexual

Acordei hoje pensando se já tinha conhecido na vida alguém passível de ser considerado um pervertido sexual. Isso foi depois de ter passado a noite sonhando com uma tia avó distante minha chamada Dalila, que no sonho usava um tapa-olho e tinha um papagaio costurado no ombro direito, e pelo que acordei com uma ereção.

Fiquei pensando um tempo e me lembrei do professor mais legal que tinha tido na vida: um de geografia, na época do colégio. Todas as meninas da minha turma, menos umas três, já tinham peito e bunda. O professor se chamava Ednaldo, tinha meio quilômetro de testa, um cabelo muito liso no formato de uma cuia, e era completamente fanho. Tinha uma risada engraçada, que não se sabia onde começava e nem onde acabava. Era como o universo, com a diferença que era apenas uma risada. Todas as meninas da turma queriam trepar desesperadamente com o Ednaldo. Os caras queriam ser como ele. Ele era ridículo demais.

Éramos um bando de calças frouxas ginasianos, na faixa dos 14 anos. Eu era pouco desenvolvido para minha idade, por isso não tinha pêlo nenhum no corpo. Mas no meu bando havia sujeitos como Gegê e Ketchup, ambos já com barba e colhões de um homem de verdade desde os 11 anos. Gegê, inclusive, usava cavanhaque nessa época, me lembro bem, além de anéis com espetos e um tridente tatuado no pescoço. Um dia, depois que Gegê esmigalhou com chutes o braço de um menino na parede durante a aula de ginástica, a direção convocou a mãe. Também tinha um tridente ou algo do gênero tatuado em algum lugar e chegou completamente bêbada para ver o filho. Se deram no meio da rua, em frente ao colégio. Gegê era mesmo um animal. Machucou bastante a mãe, com socos e pontapés, porque ela estava de fato muito embriagada. Deixou a mãe ali estatelada e semi-nua no chão e se mandou: o sujeito mais cruel de uma época. Depois nunca mais vi o Gegê. Minto! Vi um dia desses: carregava uma pastinha com uma camisa-pólo amarela e não era maior do que eu. Esses assassinos profissionais, quando explodem já na adolescência, normalmente viram evangélicos ou hare krishnas quando ficam adultos e já não dá tempo para mais nada. Já bateram o que tinham que bater. Agora acham que precisam se redimir de algum jeito. Nunca entendi isso muito bem.

Mas dizia que a maravilha da história é que, justamente esse professor de geografia, o Ednaldo, por ser querido por todos na turma, meninos e meninas, resolveu nos acompanhar como guia e, segundo ele, cinegrafista da nossa viagem de fim de ano.

Íamos para Penedo e, se não me engano, estava frio como o cu de uma foca. Eu era um gordinho irritante de boné, por isso sentia pouco frio. Eu ejaculava sem parar. Mas andava com uma turma meio barulhenta, que acabava sendo o centro dos principais motins, o que me dava, de respaldo, certa notoriedade. Eu prestava muita atenção nas meninas, em cada movimento delas, todos decorados numa caixinha de prazer e esquecimento, de onde já podia ver brotar o suco eterno nos peitinhos inchados de tesão e hormônios. E elas sabiam disso. E eu sabia que elas sabiam. Mas elas achavam que eu não sabia. Meninas amadurecem muito mais cedo que os meninos. Mas os meninos aprendem a mentir bem antes, o que acaba equilibrando o jogo de uma certa forma.

A viagem se passou quase toda num hotel de campo, exceto no dia em que fomos a um baile finlandês. No hotel eram meninos de um lado, meninas do outro. Sim, senhor. Boa noite, senhor... E todos juntos outra vez no escuro, uma ilusão para nós, diversão para elas. E eu acabava sozinho no quarto imaginando todas elas chupando umas as outras durante a noite, e acordava com o saco inchado e dolorido. Aquelas meninas foram meu primeiro problema sério. E de todo o resto do bando. Um bando de figuras magras e espinhentas, ou gordas e flácidas, de canelas largas e nenhum ombro, todos de bonés e têmporas sempre suadas, sempre com aquelas camisas de futebol, aqueles joelhos ralados, aquele cheiro de suor entranhado para sempre. E do outro lado, o paraíso. Corpos em plena evolução. Uma transição a olhos nus. A máquina da vida em pleno vapor. Pra mim elas andavam sempre em câmera lenta. Ainda sonho com seus olhos. Na época sonhava com cada resvalo dos seus dedos, com cada sorriso roubado de outro sujeito com mais sorte do que eu. Posso dizer que nessa época eu amei com toda a intensidade. Um passo, queda, um passo, abismo, um passo, céu, outro passo, tocando nos quadris, nas barrigas das pernas, nas barrigas ainda um pouco sem forma, nos calcanhares desajeitados... então acordava com calafrios.

Mas onde eu queria chegar era aqui. Professor Ednaldo, de geografia, de fato “cinegrafou” a viagem. Inclusive mixando as imagens com uma trilha sonora escolhida pelo próprio: havia o hino do Flamengo inteiro em todas as suas variações – inclusive num quarteto de harpas – e uma música funk, do tipo que um garoto como eu não podia ouvir vendo uma mulher dançar ao mesmo tempo.

Depois que voltamos da viagem Ednaldo reuniu a turma e disse para irmos à sala de vídeo assistir ao “nosso filme”, e dava uma daquelas risadas com ecos intermináveis. Os garotos, esbaforidos, se espremiam em volta da porta, enquanto as meninas roíam as unhas com cara de indiferença, mas loucas de curiosidade. Nós éramos apenas animais em convulsão. Elas estavam realmente preocupadas com suas reputações, loucas para saber qual delas era a preferida do Professor Senhor Cabeça de Cuia.

No caminho até a sala de vídeo, cutuquei o professor pelo ombro. Ele se virou rindo. Vivia rindo.

- Ei – falei – você não comeria uma delas?

Ele ficou sério por um segundo, depois abriu de novo aquela infinidade de dentes.

- Eu tenho uma baiana – ele disse. – Uma índia baiana que tá me esperando numa rede lá na Bahia. No fim do ano vou lá buscar minha índia.

Eu nunca engoli muito essa história de índia baiana. E ele sempre jogava essa. De qualquer modo eu não disse mais nada e ele me deu um tapa na moleira e eu fui me espremer juntos aos outros hominídeos pelo melhor lugar na sala de vídeo. Ednaldo tinha prometido uma surpresa no vídeo. As meninas entraram depois, todas muito sérias, menos umas duas ou três que, como eram muito mais feias, já eram mais depravadas desde cedo. Essas nos encaravam e nós as queimávamos com isqueiros, púnhamos alfinetes nas suas cadeiras, tentávamos estuprá-las quando estivesse escuro. Era uma relação saudável. Com as outras era frio e simples: nós éramos imaturos, brutos, fedíamos e não sabíamos ainda usar os nossos paus; elas eram cheirosas, algumas místicas, todas profundas conhecedoras da psique humana, isso além daquelas curvas maravilhosas e todo o conhecimento sobre exatamente o que fazer com elas.

Sentaram no fundo da sala, para evitar o professor, fingindo vergonha e desatenção. Os garotos se amontoaram uns sobre os outros na frente da televisão. Miessa acertou um direto nos olhos de Baliú, que quase teve um deles arrancado com a tampa de uma caneta. Mas quando tentou reclamar o resto calou sua boca na marra. Do meu lado sentava meu melhor amigo: Tognozzi. Parte italiano, parte cubano. Não podia ser boa coisa. Era um garoto de olheiras profundas, a pele muito escura e seca e os cabelos negros e lisos, oleosos, na altura do ombro. Andava com um canivete aberto no bolso. Vivia com as mãos todas cortadas. Eu dizia a ele que ele morreria cedo pela próxima revolução. Ele parecia gostar da idéia. Mas me batia do mesmo jeito quando eu dizia. Eu batia um pouco menos porque tinha os braços muito curtos pra idade. Na sala ele estava do meu lado, com a mão dentro da calça e os olhos vidrados na TV, mordendo a língua. Foi exatamente quando começou a surpresa.

Era Mirela Porto debaixo de uma cachoeira ornada de violetas. Ela estava como nas minhas lembranças. Em câmera lenta. Eu nunca conseguia olhar para Mirela por mais de dez segundos. Agora eu tinha toda ela para mim em câmera lenta, debaixo de uma cachoeira ornada de violetas. Por trás da imagem ouvia-se um funk que dizia algo como “o que fiz foi maldade, queria me desculpar ou perdoar”. Imediatamente Tognozzi se jogou no chão na frente das cadeiras e começou a estrebuchar revirando os olhos. “Ele é epilético!”, uma menina gritou. E levaram o Tognozzi dali com língua de fora e mão dentro da calça. As meninas imediatamente se levantaram e saíram correndo, horrorisadas. Menos Maria Romero, uma das feiosas fogueteiras que, quando empurrada para fora da sala, reagiu:

- Por que não posso ver? Eu quero ver com os meninos!

Mas então foi um dos meninos que a empurrou longe. O filme avançava em outras cenas como aquela, só que melhores: o espaço entre os peitos de uma, sob determinado ângulo, uma outra puxando a barra do biquíni e mostrando os pêlos de dentro, meninas na sauna de bruços, closes nas partes da frente dos biquínis.

A televisão se apagou de repente. Ficamos no escuro. Acenderam a luz. Ednaldo. Ria e ajeitava os cabelos de cuia.

- Agora eu vou parar que deu muita confusão essa história já... Se vocês quiserem, espalhem pro resto que é 15 reais cada vídeo, e eu não aceito cheque.

***

Não sei se esse cara era um pervertido sexual. Mas lembrei dessa história depois de sonhar com a tia Dalila. Hoje ele deve estar provavelmente com sua baiana numa rede, ou pode estar também enterrando pedaços de uma menina de 14 anos. Acho qualquer das duas hipóteses viável.

22.8.05

Senhor, abençoai as segundas-feiras, amém.


Todo domingo de noite, como bom católico, faço uma reza para a semana que começa.
A reza diz assim, mais ou menos:
Aprenda a sorrir de graça.
Diga não, até mais tarde,
Quando te convidarem
E você não quiser.
Comece a se mexer mais.
Ande na praia de manhã,
Três manhãs por semana,
Comece andando depois passe gradativamente para o trote.
Isso vai te fazer bem e assim você vai olhar o mundo melhor.
Não fique à procura de amigos. Amigos não procuram nada. Amigos acham.
Molhe o rosto na água gelada, beba a água lentamente e depois olhe para o céu azul – mesmo se ele estiver cinza – como se fosse sempre a última vez.
Tome água de coco. Dizem que faz bem para o intestino. Aliás, vá ver que porra é essa de hipersensibilidade de cólon, que te faz cagar mole.
Você não precisa ser mau, mas também não precisa ser um idiota:
tente achar um meio-termo.
Não adianta olhar pela janela se você não souber enxergar através dela.
Pense positivamente em relação às pessoas, antes que te julguem um completo babaca.
Porque quando isso acontecer, dificilmente vão mudar de opinião.
Pense nas mulheres como seres cheios de amor e não como animais frios e insensíveis onde você despeja esperma uma vez por mês.
Entre numa igreja bonita cheia de estátuas de pedra uma vez por mês.
Fique ali dentro durante três minutos
e tente, nesse meio-tempo,
não ter nenhum pensamento absurdo.
Ouça um pouco mais de Nancy Sinatra sem precisar sonhar com ela te pisoteando
dentro daquelas botas pontudas.
Pare de pensar nos resultados antes de saber um mínimo das causas.
Dê no mínimo quinze horas semanais para Johann Sebastian Bach.
Aprenda a acreditar no verdadeiro espírito germinal,
segurando a respiração por dez segundos antes de sentir
vontade de matar certas pessoas.
Pare de deixar para mais tarde e faça com que não seja tarde.
Mesmo que seja só para ficar olhando a tarde passar,
que isso seja feito agora,
com todo o coração que uma mulher entrega a um homem quando ele nasce.
Tente rir um pouco mais de si e rir um pouco menos para si.
Esqueça a filosofia! Pense no mundo apenas como uma bola de vida,
e contente-se por estar vivo dentro dela.
Beba menos, durma mais, acorde mais cedo, pense em mudar de emprego, agora!
Aprenda a dar bom dia sem esperar um bom dia de volta, apenas para variar.
Se for um vagabundo, lembre do que disse o norueguês:

“Um vagabundo toca em surdina quando chega aos cinqüenta anos. Mas por que ele toca em surdina? Talvez consiga exprimir meu pensamento assim: se se chega tarde demais, no outono, ao bosque onde crescem os pomos silvestres, paciência, é tarde demais! Se se perde o dom da alegria e a faculdade de sorrir para a vida, paciência, é tarde demais! Para que lutar? Rir constantemente prova certa falta de capacidade cerebral; viver numa permanente satisfação de tudo e de si próprio é quase inferior. Mas bons momentos todos os têm. Um condenado que atravessa as ruas da cidade sentado na carroça que o conduz ao patíbulo, ao sentar no banco, um prego que o incomoda, desvia-se e passa a sentir-se mais à vontade. Em todas as situações há uma compensação (...) Vagabundo, esse não quer senão aquilo que a vida lhe oferece. Se lhe falta o pão, a casa, a roupa e a lareira, sofre, mas não se revolta porque sabe que se uma coisa não aparece, aparece outra. Se todas faltam, não se revolta, toma a responsabilidade sobre si. É triste, às vezes, curvar a cerviz aos golpes do destino; envelhece, torna os cabelos horrorosamente grisalhos, mas um vagabundo agradece a Deus a vida, que às vezes é tão boa de viver”.

E depois não se esqueça que ainda faltam vinte e sete anos para isso.
Hoje acordei depois de uma noite boa de sono, estava disposto.
Ao me espreguiçar fui obrigado a sujar as calças devido a minha provável hipersensibilidade de cólon, que pode também ser traduzida como “bebida demais”. Minha testa tinha inchado, quando eu me vi no espelho do banheiro. Tinha ali uma bela cicatriz que da noite pro dia havia enegrecido pavorosamente. Eu estava com uma cara assassina. Gostei da cicatriz. Fui correr na praia depois de me lavar.
Continuo em boa forma, apesar do formato de rolha: ida e volta na orla do Flamengo, pela areia, tudo bem que num ritmo de atleta para-olímpico de quinta categoria, mas sem bufar.
Voltei para casa cansado, mas não exausto, e pensei: “meu deus, a quem eu estou querendo enganar?”. Dobrei a esquina da minha rua e tropecei num mendigo muito velho que estava deitado ali, metido num boné vermelho abarrotado e nuns trapos. Caí no chão com a queda e, mãe de Cristo, que fedor horroroso! O velho gemeu quando eu sentei o pé na sua costela, o que me fez cair, pois ele estava deitado na virada da rua, bem no meio da calçada, e eu vinha rápido, já um pouco assado na virilha, louco por um banho gelado. Me levantei sem reclamar de nada, me lembro que ainda tentei sorrir para aquilo. Bati os joelhos com as mãos e, quando fui bater as mãos, elas estavam manchadas de sangue. Um sangue escuro, parecia vinho. Aquilo me deixou meio tonto, porque depois ainda olhei pros joelhos, um levemente arranhado, mas o outro com pedaços de pele triturados e sujos misturados com terra. Olhei para o mendigo, que gemia na minha frente, sem no entanto dizer uma palavra. Fui andando até ele. Sentia o cheiro do meu próprio sangue e, misturado com o fedor terrível do mendigo, era um cheiro de fazer vomitar o eremita mais desapegado de toda a materialidade do mundo. Não era cheiro de sujo, era cheiro de doença, o homem fedia a morte, por isso apenas conseguia gemer. Quando me aproximei, pude ver. Um dos pés do sujeito era uma enorme pata, tomada pela elefantíase. Não consegui olhar por muito tempo mas, pelo que pude ver, ele tinha dois dedões em vez de um só no mesmo pé. Era dali que saía o fedor. Dali que vinha a morte. Olhei para ela de frente. Juntei o mendigo do chão pelos braços e o encostei na mureta de um edifício. Ele se assustou e chegou a se debater, mas depois cedeu e se largou sobre meus braços, e eu quase vomitei. Ele olhou pra mim então – parecia que ia chover – com uma cara retorcida, um bafo terrível de cachaça. Disse: “me dá dois real pra eu comprar um pão”. Não era nem mesmo um pedido. Era uma frase com nenhuma entonação. Disse a ele: “Você vai gastar isso tudo com cachaça que eu sei”. Ele me olhou, sua cara tinha mudado de expressão, passou para uma cara de vítima. Disse: “prometo que não, por tudo que é mais sagrado”. E o mendigo se virou um pouco e puxou a perna que tinha o pé inchado com uma das mãos. Disse: “olha aqui... você acha o que disso daqui?”. Eu não disse nada. Tentei fazer como na reza, mas o céu cinza era cinza mesmo e não azul. Então prendi a respiração por dez segundos, e tentei não odiar o mendigo e a mim mesmo, por não saber como lidar com determinada situação. Deixei dois reais enfiados no meio dos trapos do homem e o enrolei novamente. Olhei para os lados, não havia ninguém na rua, nenhum som, os passarinhos, todos parados como numa marcha fúnebre, me olhando de cima das árvores sem folha, os carros, até mesmo eles haviam parado de passar. Acredito que o mundo parou e senti a morte do meu lado, vindo buscar aquele homem. Cambaleei até em casa e sentei em frente ao computador. O sangue no joelho havia coagulado e estava escuro como o nevoeiro antes do fim do universo. Ninguém me amava do outro lado do mundo. Era segunda-feira outra vez, e ainda faltavam sete dias para a próxima reza. Os homens matavam porque eram malucos e justificavam porque era a lei.
E não fui eu quem disso isso pela primeira vez.

20.8.05

Sexta-feira-fim-de-feira

A manhã se abria... O horizonte em cima da pedra sorria... A chuva vinha de longe mas...

O horizonte cedia... A chuva vazia inchava arredia... A manhã se despia no longínquo a...

Linha de longe era minha... O sangue... Sicília... Divida com sangue ralo de vigília.

Poe põe um navio inteiro afogado no mesmo sonho de passado e morte

Tento dormir. Mas li. Estou lá! Só eu.

Péssimo filme bê, e pior: filme bê sem mamãe nem papai nem bebê.

É a tua cara: isso.

Por(que) “que”* eu gosto de você”?”(.)

Dou duas dentadas na torrada

Uma águia trans-siberiana se emana do meio das duas dentadas.

Parece uma torrada dentada amanteigada nazista.

Turbinas falhas no que já penso ser alguma vista.

Broches e copos plásticos no lugar do deserto.

Sozinho quase me borro de medo mas desperto.

Bebum medo é quase sozinho de perto.

Duas frases, dois “quase”,

bêbado suave medroso,

dois “sozinho”:

Caminho.

A águia (tarada) perdeu a cabeça pra naja porque quis voar.

Sou um canibal feliz protocolar.

* o único erro são aspas na pergunta.

19.8.05

minha querida noite com cólica

Ia começar dizendo que sou um perfeito pessimista católico: um tipo que diz não rezando pelo sim. Mas hoje não (mais uma demonstração) que a noite é fresca, o peito é quente e não tem lua no céu. Algo que não sei de onde vem nem pra onde vai fica bem aqui, como se esse algo bem aqui não soubesse também ficar parado sem avisar. Então somos dois certos sem saber, dentro de um apenas duvidoso sem errar. Dou um pulo até a janela. Finjo que acendo um cigarro – mas nem tenho um cigarro – para poder enrugar a testa em vez de pensar. Não agüento teus urros noturnos de cólica, a pressão que você faz com o travesseiro sobre o ventre, teu formato feto felino enquanto dorme tranqüilamente, dentes rangendo mordidos, teu beijo de porra depois que eu desperdiço mais uma boa intenção na tua boca, não agüento isso tudo deitado ao teu lado. Tenho que levantar atrás de ar e não há. Mas você fala comigo com tanto carinho e tão pouco jeito – porque não somos dados a jeitos – e eu leio a história dos sapatinhos vermelhos pra você dormir mas no fim a noite é quem dorme e você acorda e baixa a cabeça pra falar da morte e eu te digo: “levanta a cabeça que a morte se encara nos olhos!”. Mas é demais pra ti também, então primeiro somos dois sonâmbulos calados dentro de uma garrafa bronzeada metade vazia não querendo machucar um ao outro mas sabendo que viver um ao outro machuca sem querer. Você pergunta “o que há”, eu digo “é um troço... eu sei lá”, então roçamos pernas por debaixo da mesa e quando dou por mim, aquele algo que não sei de onde vem nem pra onde vai resvala na tua calça de brim e estamos juntos por minutos que parecem semanas e posso sentir o fim porque me deram o começo e isso é tudo que um dia eu pedi a deus se algum dia ele estivesse na janela ao meu lado e me oferecesse um cigarro – eu que não fumo – daí seríamos meus dois defuntos: eu e esse algo que não sei de onde vem nem pra onde vai, mais o Um Universal que inicia as coisas pra depois sumir sem dar nomes a elas. E teus gritos de cólica ao meu lado me dão um futuro sem passado onde me vejo, cabelos brancos, poucos, pernas tomadas pelo roxo do tempo mal-gasto, espalhado numa cadeira de balanço, e você colhendo nabos frescos com seu metro e meio e sua cinturinha reta, com um vestido de flores do campo que te confundem com um ramo de avencas que lemos juntos numa história linda que falava de amor e não dizia mais do quê. Então no meu sonho não somos você e eu e sim eu e um campo vestido florido de algodão que posso dizer que amo, com bochechas vermelhas de sol moribundo, mão na anca outra na terra, uma larga aba de palha desperta, sorrindo com dentes levemente separados só pra mim e pros nabos. É quando dou por mim sem nabo nem nada, peito quente, têmporas doentes, cheio de presentes indicativos e pontos de interrogação invertidos em anzóis para fisgar tuas certezas e as estrelas, mas elas nos deixaram a sós com anzóis sem nós e foram visitar outros sóis. No apartamento da frente uma mulher conta os terços do seu rosário no escuro enrolada numa velha fatiota manchada de sangue cheia de medalhas e condecorações e uma linha vai de mim até ela, passando por cima da baía espelho do céu na terra, porque os dois ainda são capazes de chorar sem som e sonhar sem sono numa noite de estrelas sem lua nem barulho fora o pulsar surdo dos corações sozinhos e dos teus gemidos, e eu digo que se doer muito você morde a fronha que já passa e fico no teu ouvido tentando fazer passar com um zumbido de queda d’água, até que você dorme e desaparece no meio dos lençóis e eu nunca mais dormi porque até hoje estou atrás de ti e de nós.

17.8.05

vai-e-vem-joão-de-barro

para o velho pantaneiro


do meu canto fechado, ouvido morto,

tento ouvir o sopro, um vulto ereto,

de um joão-de-barro no forro do teto.


mas meu joão-de-barro bate as asas,

só um pio, então sinto a foice

e depois não ouço mais nada.

debandada. foi-se.


de trás do poço onde perdi meu tempo

sinto um murro no estômago violento

que não me deixa parar de chorar quando ouço

o velho poeta, isolado às margens de um rio,

capim na mão, boina de veludo, na outra o resto do mundo,

dizer que só nos resta um sentimento longínquo e profundo

(uma página que se abre à lágrima minúscula)

de coisa esquecida na terra

(é quando meu joão-de-barro regressa)

como um lápis numa península

(ou eu quando ainda era, alisando a pele matutina

do teu rosto materno antes de fugir para o sonho,

acreditando cegamente que seria para sempre bom).

16.8.05

Lançamento em DVD – “O Homem Elefante”



Lançado agora em DVD, “O Homem Elefante” (1980) de David Lynch conta a história real do inglês John Merrick (1862-1890), portador de uma doença que deformou de maneira irreversível 90% do seu corpo, chamando a atenção do anatomista Frederick Treves, vivido nas telas por Anthony Hopkins, quando o médico encontra Merrick num circo de aberrações, onde se alimenta apenas de batatas e é seguidamente espancado. O aspecto de Merrick, segundo dr. Treves, não é somente grotesco, mas um fenômeno da anatomia que precisa ser estudado. John tem o crânio dilatado em grandes bolas ósseas protuberantes, metade do rosto completamente desfigurando com sobras de pele por toda a parte, uma bronquite aguda que o faz respirar como se fosse uma besta assassina, além de grossas saliências escamosas expostas na espinha dorsal, que dão a sua pele a aparência de uma couraça. As únicas partes do seu corpo que escapam da deformidade são, por ironia, suas genitálias e seu braço esquerdo. O filme todo é baseado nos manuscritos do dr. Frederick Treves, responsável por tirar Merrick do circo de horrores onde vinha sendo o ganha-pão de Mr. Bytes, um mercenário beberrão interpretado magistralmente pelo ator inglês Freddie Jones em cada uma de suas expressões faciais. John Hurt tira de letra a dificuldade de encarar um personagem tão complexo e dolorido quanto Merrick, sem contar com a pesadíssima maquiagem que lhe cobre rosto e corpo, desenhada por Christopher Tucker. Fecha o elenco principal a atriz Anne Bancroft, com a beleza atemporal que poucas atrizes conseguem ter (Lauren Bacall, Rita Hayworth, Katherine Hepburn, Elizabeth Taylor, Ava Gardner, Sonia Braga são outras do mesmo calão). Bancroft no filme é Mrs. Kendal, diva do teatro inglês e outra importante personagem na vida de Merrick, depois que se conhecem por intermédio do dr. Treves. “O Homem Elefante” é um filme indispensável e talvez o mais maduro de Lynch – equilibrado entre a monotonia de “História Real” e o nonsense de “Cidade dos Sonhos” –, porque fala de amor e ódio sem a intenção de domesticar sentimentos. Um filme duro nas imagens mas quase ingênuo – e por isso mesmo belíssimo – na estrutura, mostra tudo que um ser humano é capaz de sentir, todas as suas ambigüidades, desvios de caráter, quando exposto às situações mais extremas: o que só um cineasta com muita sensibilidade poderia conseguir.
Algumas cenas inesquecíveis de “O Homem Elefante”:
- Quando Mrs. Kendal (Anne Brancroft, a eterna Mrs. Robinson de “A primeira noite de um homem”) recita Romeu e Julieta aos prantos com John (Hurt) Merrick (o perseguido de “1984”). Eu contei: foram apenas 4 piscadas durante a cena, que tem por volta de cinco minutos. Por fim, Mrs. Kendal, emocionada com o instinto dramático de Merrick, olha para seu rosto desfigurado e diz: “Você não é o Homem Elefante... Você é Romeu!”.
- O close do rosto dr. Frederick Treves (Hopkins) quando vê o Homem Elefante pela primeira vez em sua jaula, durante uma apresentação particular que Mr. Bytes (Freddie Jones, pra mim o melhor ator do filme) faz do seu “tesouro”, como se refere ao rapaz de 21 anos que foi pisoteado por um elefante ainda no útero da mãe.
- A cena da crise moral do dr. Treves quando, depois de livrar John Merrick do circo de horrores de Bytes, se pergunta se não está fazendo a mesma coisa que o mercenário, expondo seu paciente para os alpinistas sociais da alta classe londrina e para monoculosos doutores da cúpula médica da cidade, que aparecem para conhecer a mais nova celebridade – antes presa numa jaula, agora presa a xícaras de chá e encontros banais – e não deixam de entortar seus narizes com nojo, mas felizes por aparecerem nos noticiários.
- Quando Merrick, convidado por Mrs. Kendal, conhece os palcos pela primeira vez. A montagem é dos momentos mais altos de Lynch no realismo fantástico que caracteriza suas produções mais lisérgicas (Cidades dos Anjos, Veludo Azul, Twin Peaks).
- A farra que um porteiro aproveitador do hospital promove no quarto de Hurt, trazendo uma multidão de bêbados e putas para embebedá-lo. Talvez seja a cena mais asfixiante, junto com aquela em que Mr. Bytes açoita Merrick em cima de um picadeiro com uma bengala, numa apresentação em Paris, quando ele já não consegue mais ficar em pé devido a sua doença degenerativa e cai exausto no chão, e pelo que o público francês cospe no palco e Bytes joga Merrick dentro de uma jaula com babuinos furiosos, como castigo.
- A passagem para a morte construída por Lynch é das cenas mais bonitas que já vi no cinema. Feita de uma viagem por estrelas e a mais antiga lembrança positiva das palavras da mãe de Merrick, dizendo que “nada jamais morrerá”, quando ele finalmente termina de construir sua maquete da Saint Philip’s Cathedral no seu quarto de hospital e resolve, por fim, dormir com a cabeça encostada no travesseiro, como qualquer pessoa normal.
- A trilha, com música original de John Morris, é exata: mistura suspense com mambembe e dá o tom do filme. A reconstituição em PB da Londres do final do séc. XIX também é muito bem feita, com suas fumaças e sombras e vazamentos de esgoto.
* O filme é pessimista em relação aos homens, mas não em relação a todos os homens, além do que é um filme que exige do espectador uma certa conduta moral que, de início, não conseguimos ter, porque tudo nos parece de imediato exagerado, maniqueísta, mas no fim vemos que somos apenas mais um exemplo da crítica que o filme se propõe a fazer da sociedade, que usa desculpas do tipo para se afastar de determinadas realidades, por serem insuportáveis, como a deficiência e o isolamento social por que passam pessoas como John Merrick que, no fim, mais parece um Oscar Wilde Elefante, com seu anel no dedo mindinho e seu cabelo Gogol-channel. Primeiro vemos Merrick como aberração, o suspense e a música antecipam essa sensação. Em seguida, ao nos acostumarmos com sua presença física, o vemos com piedade (por exemplo, na cena em que Merrick revela ao médico que decepção ele deve ter sido para sua mãe quando nasceu). Mas Lynch provoca um processo de auto-análise no espectador, então, no fim vemos que a piedade é um passo para exploração, dissimulação e alívio de consciência. O argumento do “dono” de Merrick, Mr. Bytes, quando tenta convencer o médico a liberar “seu tesouro” de volta ao seu Freak Show, é: “O que ele vai fazer? É uma aberração, coitado. Somos sócios. Eu ajudo ele e ele a mim. Nós entendemos um o outro”. E no fim, John Merrick chega até a ficar bonito, quando esquecemos de ter pena dele para vermos o quão interessante, apesar de utópica, é sua personalidade desprovida de maldade, talvez por tanto ter sofrido maus tratos – o que, convenhamos, é a coisa mais difícil de acreditar no filme. Um filme que pesa nos ombros, porque sentimos um pouco de tudo o que ele representa de bom e de ruim no comportamento humano, através da nossa própria experiência ao ver John Merrick pela primeira vez e pela última.

Dois intelectualóides bêbados conversam sobre poesia chinesa num bar cheio

Já leu Li Po?

Hein?

Li Po...

Ah! Li, pô...

É... Li Po: o poeta chinês.

Tô sabendo... Li, pô.

Esse mesmo.

Eu disse “li, pô”!

Eu também disse...

E gostou?

Não... Nunca li...

Mas você disse que também disse.

Disse Li Po. Não que tivesse lido Li Po. E então, você leu?

Eu li Li Po, pô! Foi o que eu disse...

Ah, sim! Então você leu...

Li, pô... Já falei!

E o que achou?

Achei difícil...

Mas me disseram que ele só falava de tomar vinho e ver o céu.

Por isso mesmo.

Como assim?

Acho difícil falar disso...

Talvez...

Acho difícil apenas tomar vinho e ver o céu de ressaca.

Acho que tem coisa mais difícil do que isso...

De fato... Mas a impressão que me dá é que ele nunca trabalhou pra viver. Isso é difícil.

Mas as poesias são boas...

Como você sabe? Você nunca leu Li Po, pô!

Nunca li Li Po, mas imagino que sejam bonitas. Me disseram que eram.

Você acredita no que te dizem?

Não... Quase nunca. Mas dessa vez acreditei. Às vezes é bom.

Sim... E o pior é que ele trabalhou.

Quem?

Li Po.

Já sei que leu. Mas quem trabalhou?

Ele. Li Po. O poeta chinês... Foi secretário-deputado-assistente-juiz de um tal Chou-Chih.

O que é um secretário-deputado-assistente-juiz?

Não sei. Mas ele foi isso.

Eu queria escrever sobre tomar vinho e olhar pro céu estrelado.

Mas ele se lascou também. Tomava vinho por isso. Foi exilado duas vezes. Daí endoidou.

Endoidou, é?

Hum hum... E começou a vagar por aí, enchendo a cara de vinho.

Classe...

Pois é...

Mas onde ele arrumava o vinho quando não tinha trabalho?

Naquela época era mais fácil arrumar vinho.

Queria ter vivido naquela época.

Eu não. Se hoje na China matam o sujeito e cobram pela bala, imagina naquela época.

Que época era?

Início dos anos 700, depois de Cristo.

Você é católico?

Não. Mas bebo vinho. Como Cristo. E como Li Po.

Ele era católico?

Não. Acho que era taoista.

O que é um taoista?

Não sei.

Um dia vou escrever uma novela sobre beber vinho e olhar as estrelas...

Vai, é?

Vou. Já tenho um título até. Vai ser C’est à cause du vin.

Por que em francês?

Porque fica bonito. Não acha?

Acho que parece coisa de viado.

Eu sou viado...

Ah é... Tinha esquecido...

E então o bar ficou mais cheio, a gritaria mais alta e os dois constrangidos demais para fazer outra coisa que não pedir novos copos gelados e mais uma cerveja cara demais.

15.8.05

Eu e Tonto Poe e Annabel Lee do outro lado da lua

Tem sido uma tarefa difícil fazer o fácil. Tenho tentado um armistício com o passado. Olhando no espelho rio dos meus resultados. Mas como sou fraco! Não consigo ser eu mesmo meu próprio resultado. Me parecendo tão cedo para mais um trago da morte e mais um parto. Tristes são as venezianas que, sempre nas janelas, não ganham descanso do vento, do sol, da escuridão, da luz cansada e lenta das velas. Quando a noite por aqui terminar e quando meu amigo sem amigos Tonto Poe der sua ultima volta depois do pingo-fim da última garrafa e quando os corvos todos já bateram asas e sobrou apenas meu gato preto e minha carne dentro de paredes atijoladas sobre o tempo do que nem me lembro mais da minha mocidade, algum feixe raro se fará rajada do outro lado da lua cheia: o lado que não se poetiza porque agora é tarde. A rajada será colorida, verde, cheia, constante e seremos eu e Tonto Poe abraçados no meio da rua, cambaleantes como a última onda do mar de luz da amizade pura. Quando as cores se confundirem com meu rosto no espelho, vai ser a última vez que quero sofrer por não saber ter coragem. Vai ser a última vez que pensarei sem tremer com toda falta de bondade. Vai ser eu se fosse tu comigo dando adeus a deus: minha luz rajada cênica de lua da lua que não está na arte. Vou ser apenas mais um corpo cheio de pernas descendo no escuro da última viagem para o fim da tarde da última primavera. Queria dizer para vocês que vai ser bonito, calmo, que a cabeça finalmente vai descansar, para não ter que dizer que o trovão que voa mais alto da terra para o chão do universo pálido vai rachar finalmente o pouco do resto do ranço do desejo de engano de tantos pobres coitados. E, ainda assim, será tarde porque ao que parece eu já nasci tarde e as escadas da noite-foice não param de descer suas lâminas sobre minha testa enrugada com cada vez mais espaço entre os degraus da escada e mais medo de ser o último vão como... agora!... Quando tropeço e caio e Tonto Poe não está ali para me segurar. Tão longe de mim que nem meus nervos podem tocar. E isso tudo só de pensar no teu rosto antes de dormir, minha querida Annabel Lee, e depois do sono tremer de frio ao beber teu suor num copo sujo, vai ser quando brindarei à noite pela última vez. E então as rajadas não serão mais tão coloridas (apenas fantasmas no lugar do meu rosto) e as escadas nunca foram de subida nem descida (apenas mais uma piada de mau gosto) e você nunca foi desculpa nem me deu uma vida (apenas uma amostra do meu próprio fosso) e quando digo “você”, é como se quisesse dizer: você sou (o que tenho medo de admitir) eu mesmo de novo.

14.8.05

Fim de Semana com São Nicolau

Ócio completo, tarde de natal,

posso senti-lo, estou aqui,

fazendo comida de avental.

Pensando nas lágrimas que não vieram,

descasco um caqui, deposito as cascas junto

das saudades que não funcionam mais

no meu português sem raízes roseanas.

Um gosto assassino

Ócio completo

O que fazer contigo?

Beber

Foder

Gozar

Mentir

Howard Hawks. Lei seca. Até mais ver.

Sei que a última coisa vai ser

Escrever sobre você.

O que é uma mentira complexa,

Bem mais interessante que uma verdade sincera

Para um futuro breve e saudável


Futuramente, depois das CPIs, quero começar a me regrar, no melhor estilo WC Fields.

mal encarnado

ela entra: nos olhamos: cabelos presos: se vira: fico olhando: toca uma música terrível: um negro que se diz rapper: quatro anos de festa funk: eu não consigo dançar: a cerveja acabou: latão a 3 reais: e acabou: procuro a vida pela pista de dança: vou embora deitar na cama.