26.12.25

"um poema de orelhão"


há uma pessoa que não sabe

quem eu sou e me confia

sangue coagulado na ferida

da fantasia de ter que ser mil

para não ser jamais nenhum.

 

considerar um estranho

como alguém passível

de tamanha melancolia

é uma coisa hoje em dia

da mais alta consideração.

 

algo do tipo: ali eu vejo

– vejo não, ali eu sinto –

uma sombra que dança

na velocidade da minha,

dois trapezistas diletantes,

no circo do efêmero e nu:

 

máscaras que caem no rosto,

o meu, o teu, que se enrijece

de uma fraterna sensualidade

em que nós somos o ponto,

o cume do equilíbrio passional

no que se precede a neve mole

das arapucas e desejos aéreos

componentes do nosso charme,

que é o de sermos atores mudos

no cerne de um filme falante.

 

com a grande diferença,

no que diz respeito a mim:

fazer conversa de abismo:

alguma maior honraria?

 

mas algumas amizades

têm poros mais abertos

e a pele de acne dos que

amam com intensidade

as pelancas do desejo.

 

de ser alguém que dá o troco

na sombra de alguém criado

para que esse alguém que cria,

duas faces de moeda precisa,

exista porque apenas do corte

absoluto de uma estapafúrdia

linha de fuga acadêmica demais

para render um poema-escuta,

prefiro chamar poema de orelhão,

em que esteja aquilo que permite

a um despedaçado farejar o outro.

 

e que da urina trocada em medo

cresça uma fúria que, de comum,

torne-se bendita e quase um voto

de que os despedaçados têm imãs

que os permitem ao menos flutuar.