27.2.10

"o grande acontecimento fatal"

o Haiti fica dentro do peito,
os mortos nos terremotos
chilenos não se comparam
com o que não vemos aqui
mais por dentro, enquanto
pensamos nas nossas coisas
o mundo grita, pede socorro,
mas estamos fazendo planos
para a família, para o futuro
e o futuro é uma boca aberta
daquelas que não se sabem
desesperadas ou paralíticas,
e de não muito longe ele vem,
o grande acontecimento fatal
está mais perto, nos cercando,
enquanto contamos sucessos
e choramos escondidos, nus.

23.2.10

"orgulho do papai"

o suicídio foi marcado no primeiro dia
a fogo, ferro e, vá lá, algumas rosas,
estas que, nós bem sabíamos, jamais
agüentariam o mau tempo do adeus,
mas mesmo assim nós lambíamos
estas rosas de plástico como filhas,
e no fim chegou o dia, ficamos eu
e a corda e o penhasco e a árvore,
você se foi, fugimos ao combinado
e de ti, desculpe amor, roubei a foto
que guardarei na carteira, e daqui
a vinte anos, quando perguntarem,
responderei: essa aqui é a minha filha.

22.2.10

“fim de partida”

agora, prometo, calarei minhas chaves,
deixarei escorrer, dolorido, todo visco.
me arrancaram os corrimões infalíveis
e a memória antecipa-se aos acordos.

nada mais de gritos de veludo, os tiros
de festim tornaram-se balas de ponta
metálica, como o gosto no fundo do sexo
que não fornece mais ao cúmulo armas
necessárias para perpetuar com cismas
o que cansamos de matar com nomes.

agora você já vai bem longe, sumiram
os precipícios em cuja beira dormíamos
calmos, o vento parado anuncia cortes,
não mais, porém, os cortes renegados
pelo que no fundo doía de dor legítima.

esquinas não receberão mais as ancas
do que borbota como lava, mas já não
queima, porque somos agora carvões
abandonados ao fogo leve da partida,
e quem sabe voltaremos, quem sabe
um dia não acenderemos como brasas
para deixar a carne ainda crua dentro,
por mais que, fora, a pele não responda.

17.2.10

"crime passional"

é preciso ter muito amor,
para enfim matar o amor,
para, não sobrando nada,
termos pelo que morrer.

é preciso não saber nada,
matá-lo como um viciado
atrás do que já não enche
mais o coração desatento.

não se espera a enchente
que arruinará as cidades.
engolimos água e fomos
obrigados a ver os peixes.

uma vez vistos os peixes,
estamos arruinados, não
há nada a fazer, o amor
receberá a faca na nuca.

necessário, infelizmente,
aos com muito amor, ir
na direção do que espera
ainda quente, respirando
com dificuldade horrível

e meter a faca até o fundo
e tirar o sangue, lamber
a faca aos prantos, afinal,
só se mata o que se quer
para sempre vivo, em nós.

7.2.10

"as variações de glenn gould"

sinto que se afasta lentamente
a montanha rachada pelo vacilo,
os lábios untados de saliva ácida,
e talvez não tenha volta, a noite
sua enquanto, no meu sentimento,
quebraram as mãos de Glenn Gould,
e agora eles se vestem de branco,
afinal eles precisam, pobres de nós,
estar de branco para dizer que você
está louco – branco, a cor da paz.