27.2.09

"Alguém imaginava Napoleão desse jeito?"

Uma mulher inteligente que esteve diversas vezes com Napoleão, em abril e maio de 1795, aceitou coligir suas lembranças e passar-me as anotações que seguem:

Era com certeza o ser mais magro e incomum que eu havia encontrado em toda a minha vida. Segundo a moda da época, usava imensas "oreilles-de-chien" (penteado constituído de longas mechas que caíam sobre as têmporas), que lhe desciam até os ombros. O olhar típico dos italianos, especial e muitas vezes um pouco sombrio, não tinha a prodigalidade dos cabelos. Em vez de dar a impressão de um homem inteligente e fervoroso, passava mais facilmente a de alguém que não seria agradável encontrar num bosque.

A figura do general Bonaparte não inspirava confiança. O redingote que usava estava de tal forma puído, ele tinha uma aparência tão lastimável, que mal pude crer, a princípio, que aquele homem fosse um general. Mas acreditei na mesma hora que se tratava de um homem inteligente ou, ao menos, muito especial. Lembro-me que achei que seu olhar evocava o de J. J. Rousseau.
Ao rever esse general de nome peculiar pela terceira ou quarta vez, perdoei-lhe pelas exageradas "oreilles-de-chien". Fazia-me pensar num provinciano que exagera as modas, mas que, apesar desse ridículo, pode ter algum valor. O jovem Bonaparte tinha um belo olhar, que luzia quando ele falava. (...) O fato é que, para ser julgado favoravelmente, faltava-lhe apenas estar vestido de forma menos miserável.

Ele não tinha em absoluto o aspecto militar, agressivo, fanfarrão, grosseiro. Parece-me, hoje, que se podia ler nos contornos de sua boca, tão fina, tão delicada, tão bem-feita, que ele desprezava o perigo e que o perigo não o encolerizava.

(Trecho da biografia "Napoleão", de Stendhal, Ed. Boitempo, 2002)

17.2.09

"vinte e sete"

hoje estou tão distante
do meu próprio nascimento quanto
estou distante do meu pai,
que tinha a minha idade
quando eu nasci.

e nunca estivemos tão longe.

é a era de aquário, eles dizem,
e eu fico satisfeito, nadando
sozinho no meu próprio vidro.

mas o que faz dois distantes,
creio não ser a falta de amor,
mas talvez uma escassez por dentro,
alma vendada diante do penhasco,
que move a parte aventurada do espírito,
cachorro Buck voltando a galope
da expedição que lhe rendeu essa distância
(essa tamanha juventude violentada no chicote),
arrastando sozinho o trenó e outros cães mortos,
que pesam e talvez seja porque a morte
é um perder peso que pesa tanto
sobre os que sobram, sempre os de ternura truculenta,
envergonhados do choro que não é emoção contida,
é um espaço feito faca entre corpos de ferro,
é isso que permanece e que não compreendemos,
talvez um desperdício demasiado de vontade cega,
um não saber reter a vida como fonte interminável,
uma coragem literária que murcha na fila do banco,
no lançamento de poetas iconoclastas e com bafo,
no pasto com vacas como as dos potes de requeijão,
no amor, na percepção nítida de que algo em nós
está se afastando, se escondendo para depois voltar
talvez com força, provavelmente em hora inesperada,
quem sabe quando pensarmos outra vez dois juntos,
a carne remota, as políticas que já não interferem:
acho que isso é o que torna as pessoas distantes.

esse estado de se estar de algum modo flutuando,
esbarrando na realidade como algo inverossímil
e ao mesmo tempo prático demais – ah meu pai! –
e você estaria daqui a pouco esperando, como eu,
pelo desconhecido que viria de um ventre ameríndio,
com cara de chinês, quatro quilos e oitocentos gramas,
e apenas aquilo seria a nossa cruz: aquele peso todo.

15.2.09

"corra!"

sabe aquelas coisas
que você corre
para estar com elas
em qualquer lugar?

essa corrida
é a juventude.

12.2.09

"o sinal"

ontem me senti
pela primeira vez
velho.

comecei a contar
uma história longa
interminável
e a pessoa ouviu
até o final.

10.2.09

"arma"

preste atenção agora, veja bem,
pule os dedos, além deles, lá está.
esta é sua arma, não arrebente,
isso mesmo, não é muito, é sabido,
mas é sua e, por favor, cuide dela.

tentarão quebrá-la, será inútil.
você mesmo muitas vezes em vão.
mas as palavras em estilhaço,
uma a uma, como pele suturada,
serão reagrupadas outra vez neste
conjunto mórbido a que me refiro:
sua arma, e novamente lá ela, cega,
prateada, rascante de espaços vazios,
minimizada ao máximo e ainda sua.

e desdenharão de sua arma pelas ruas,
alguns com ignorância, outros com ódio.
cabe apenas a você guardar as lágrimas,
que são além de oceano verniz do medo.
cabe espatifar na parede, juntar outra vez,
caco por caco a dor, e tornar a fazer mil
vezes até, palavra por palavra, tornar-se
a cegueira voluntária, e a arma eterna.

6.2.09

"nelson"

então não há nada mais estranho
que ver um estranho sangrando,
a nós, que sangramos tanto e nem
sabemos a verdadeira verdade,
mas um estranho se meter na frente
do primeiro ônibus, que parou,
e olhar para o primeiro passante,
um senhor de família, semi-aposentado,
preocupado com sair, entrar, sair,
e este senhor recebe um pedido:
“por favor, estou morrendo, um beijo”,
e ele beija um estranho e não beija
qualquer estranho, mas é estranho
a si mesmo de repente e acusado
por mulher, patrão, encargos publicitários,
e tudo o que ele fez foi dar um último
momento de ternura a um desconhecido.
isso é o que se chama violência pacífica,
segundo Gandhi ou Nelson Rodrigues.

3.2.09

"Carta Aberta ao Reverendíssimo Senhor Polvo"

Senhor Polvo,

Depois que nos falamos demorei muito a dormir. Tentei assistir a um filme sobre São Mateus e isso, é claro, me fez sentir culpado. Sou apenas mais um, perdido entre milhares, milhões que não conheço, que acho que sou eu, que não sei quem são. Deveria ter dito ao senhor que não deve abandonar a idéia de fazer um mestrado e seguir os estudos. Até porque o senhor é um professor e, até onde eu sei, um professor devotado e muito preparado para lecionar. Porque ama. Simples, o senhor ama fazer isso e precisa estudar como o pintor precisa pintar e o escritor precisa escrever e o assassino precisa de uma arma ou pelo menos um partido político e o dentista precisa daquele motor pavoroso, tão parecido com tantas coisas, mas necessário – e o senhor bem sabe.

Pensando bem, o senhor não deveria se ausentar dessa briga. Ela diz respeito diretamente ao senhor, à profissão que ama, e me baseio aqui no jeito dos olhos do senhor quando me contava as histórias dos "alunos especiais", os violentos, os de vidas inacreditáveis, Oliver Twist sem gênio, os de infância que se tornará um buraco no peito de cada um deles, e como por outro lado eles eram mais espertos, mais rápidos, é claro, mais intensos, mais rebeldes, mais vivos, porque eles precisavam de vida mais do que qualquer outro aluno, porque eles foram adultos por muito tempo e agora era a vez deles, e o senhor sabia disso e seu esforço era tirar desses alunos tudo o que sabia que eles poderiam dar. Porque o senhor está entranhado de perseverança, que é de vez em quando ter vontade de largar o corpo e desistir da arena, mas o touro estará atrás do senhor também nos bosques calmos, nas praças públicas onde alimentamos pombos que, em muito breve, Senhor Polvo, se deixarmos como está porque é preciso às vezes pensar em desistir, se alimentarão de nós, esses pombos, e ao mesmo tempo é tão raro ter algum talento para a vida, Polvo, alimentar a boca pequena e alimentar milhares.

Creio que temos poucas opções nessa vida. Creio que chegamos um pouco tarde demais. Mas, cedo ou tarde, há apenas duas opções: lutar ou ceder. É o que dá movimento ao circulo fundamental e, acredite, muitos já cederam, muitos demais. Não há de ser você, com oito tentáculos, mais um na fila, entre os culpados.

Acredito muito no senhor, Polvo, sem as formalidades que me obrigariam a ser apenas alguém a quem não se vê há muito tempo e de quem se gostaria de saber mais. Saudades das rodas de charutos e clamorosos porres naquele saudoso café uruguaio à beira-mar. Minhas pernas ainda doem, disseram que algumas feridas jamais cicatrizarão. Mas melhorei da gastrite e já posso ver o mar.

Mande minha gratidão também a todos os demais ultramarinhos.

L. M.