3.2.09

"Carta Aberta ao Reverendíssimo Senhor Polvo"

Senhor Polvo,

Depois que nos falamos demorei muito a dormir. Tentei assistir a um filme sobre São Mateus e isso, é claro, me fez sentir culpado. Sou apenas mais um, perdido entre milhares, milhões que não conheço, que acho que sou eu, que não sei quem são. Deveria ter dito ao senhor que não deve abandonar a idéia de fazer um mestrado e seguir os estudos. Até porque o senhor é um professor e, até onde eu sei, um professor devotado e muito preparado para lecionar. Porque ama. Simples, o senhor ama fazer isso e precisa estudar como o pintor precisa pintar e o escritor precisa escrever e o assassino precisa de uma arma ou pelo menos um partido político e o dentista precisa daquele motor pavoroso, tão parecido com tantas coisas, mas necessário – e o senhor bem sabe.

Pensando bem, o senhor não deveria se ausentar dessa briga. Ela diz respeito diretamente ao senhor, à profissão que ama, e me baseio aqui no jeito dos olhos do senhor quando me contava as histórias dos "alunos especiais", os violentos, os de vidas inacreditáveis, Oliver Twist sem gênio, os de infância que se tornará um buraco no peito de cada um deles, e como por outro lado eles eram mais espertos, mais rápidos, é claro, mais intensos, mais rebeldes, mais vivos, porque eles precisavam de vida mais do que qualquer outro aluno, porque eles foram adultos por muito tempo e agora era a vez deles, e o senhor sabia disso e seu esforço era tirar desses alunos tudo o que sabia que eles poderiam dar. Porque o senhor está entranhado de perseverança, que é de vez em quando ter vontade de largar o corpo e desistir da arena, mas o touro estará atrás do senhor também nos bosques calmos, nas praças públicas onde alimentamos pombos que, em muito breve, Senhor Polvo, se deixarmos como está porque é preciso às vezes pensar em desistir, se alimentarão de nós, esses pombos, e ao mesmo tempo é tão raro ter algum talento para a vida, Polvo, alimentar a boca pequena e alimentar milhares.

Creio que temos poucas opções nessa vida. Creio que chegamos um pouco tarde demais. Mas, cedo ou tarde, há apenas duas opções: lutar ou ceder. É o que dá movimento ao circulo fundamental e, acredite, muitos já cederam, muitos demais. Não há de ser você, com oito tentáculos, mais um na fila, entre os culpados.

Acredito muito no senhor, Polvo, sem as formalidades que me obrigariam a ser apenas alguém a quem não se vê há muito tempo e de quem se gostaria de saber mais. Saudades das rodas de charutos e clamorosos porres naquele saudoso café uruguaio à beira-mar. Minhas pernas ainda doem, disseram que algumas feridas jamais cicatrizarão. Mas melhorei da gastrite e já posso ver o mar.

Mande minha gratidão também a todos os demais ultramarinhos.

L. M.

Um comentário:

Anônimo disse...

... é por essas e outras que a gente não desiste. É por essas e outras que eu escrevi pedindo ajuda num artigo acadêmico para o escritor com os olhos mais perturbados e o maior sorriso do Crônica do Dia. Pois pude perceber que o coração dele era tão grande quanto a tristeza que ele arrastava em suas linhas. E talvez, uma vez ou outra eu o reconheça em pequenos olhos em minhas salas de aula. Que tudo continue doce como esta carta-surpresa e como as rodas de charutos e os porres que pareceram realmente muito mais que uns.