entra na casa, esta casa onde, por tantas
vezes, entraste sem perceber e, cada vez
mais dentro, saías de vez, mas agora não
sabes mais como sair – olha bem os móveis,
sente o peso das horas que, pela primeira vez
se apresentam arreganhadas, feitas de tecido
sem graça, soma de farrapos – mas olha bem.
não serão mais tuas estas horas, as paredes
te dão as costas, as portas de correr emperram,
estás sozinho onde tantas vezes disseste
a ti mesmo: “estou completamente sozinho”.
mas agora que estás, então não dizes nada.
percebes o ridículo: falas na segunda pessoa.
espera um pouco à porta, não olhes para dentro
do quarto pequeno, onde te espera à toa o corpo.
o ventilador roda noutra direção, e ali está ela,
que espantava as hienas e falava com mil sóis.
não te diz respeito o lugar para onde tantas vezes
fugiste sem pés de uma realidade seca, infame.
adeus ao quadro de Chagall, ao homem flutuante
em frente à Torre de Paris, adeus, Neal Cassady,
Kerouac, que primeiro te ensinou o abraço e,
acima de tudo, adeus aos braços, que se abrem
murchos para uma nova vertigem seca, sem pulo.
de costas para o muro ficas parado, voltas à porta:
não há mais porta, os caminhos se afunilaram
em gargantas abertas por navalhas de ferrugem.
não serão mais tuas estas horas e, em breve,
não serão mais tuas estas lembranças, nem tu
serás mais de ti mesmo, pobre órfão fugitivo.
ficaram algumas marcas de amor pelo chão,
agora ficam aqui lágrimas irreconhecíveis,
sabe-se lá de que são feitas, mas escorrem
como tudo o mais escorre para fora, adiante.
adeus incensos baratos à meia-noite pálida,
adeus às cortinas prateadas que escondiam
um segredo só nosso, e nem mesmo nosso.
adeus cigana de tantos dentes – diga adeus.
adeus Elis Regina, pintada por Andy Warhol.
adeus mesa feita de um antigo baú, adeus,
bares de esquina, cartas invisíveis de amor,
viagens não realizadas, concretizadas na cama,
até um dia bairro de Laranjeiras, vinho chileno,
adeus à toda intensidade da carne crua cansada.
“o mais profundo é a pele”, você dizia imitando
Paul Valery, mas agora adeus Paul, adeus pele.
ela que se encolhe agora na cama, sonhando
com tempos talvez mais leves, mas, meu amor,
se a vida não foi leve para nós, foi por dádiva,
porque somos os que podemos agüentar o peso,
somos os beneficiados com o espanto e a cura.
principalmente, agora, adeus manta africana,
com que ela te recebeu pela primeira vez,
jogando em seguida a chave pela janela.
aqui está a chave sobre a mesa, e dos dois
restou um livro de poemas, um livro médio,
um poema só dela, dos que fazem chorar,
e a chave do peito, essa que não devolverás,
essa que de tanto abrir e fechar fez carne viva
do que antes chamavas miséria, mas agora
chamas primeiro grito, susto que não se diz,
e não falarás mais nada, apenas amarás a ela
em preto e branco, como nos filmes antigos.
2.9.09
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7 comentários:
Meu poeta preferido, te agradeço por existir e continuar escrevendo cada vez melhor e mais profundo que a pele! Beijo enorme
Você, que começou a me ensinar a escrever na terceira pessoa, que me deixou conhecer seu rosto como ninguém, vai agora, retemperar o verbo "amar" na pluraridade de seus sentimentos e de sua poesia. Lembre-se disso que eu vou lhe dizer meu querido: Você ainda vai deixar o mundo "Maronando" com essas palavras tão intensas!! Um beijo gigante!
XEQUE-MATE - Marona, você escreve cada vez melhor, mas sinto dizer, querido amigo, perdeu uma grande e linda mulher. Bob - Botafogo/RJ
Ehh! Se eu fosse esta mulher, não aguentaria um "pão duro", incapaz de comprar se quer um insenso.
agora esses "anônimos" com nomes falsos resolveram, melhor assim, elogiar vc. e a finada(que de gente boa não tem nada). Melhor assim. Pq. vcs. não ficam com ela? kkkkkkkkkkkkkkk
Foda-se a finada e foda-se vc que é tão gente boa que não se identifica. Bob - Botafogo/RJ
leo,
(...) por ter acompanhado este amor que finda, morre um pouco de mim.
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