Uma mulher inteligente que esteve diversas vezes com Napoleão, em abril e maio de 1795, aceitou coligir suas lembranças e passar-me as anotações que seguem:
Era com certeza o ser mais magro e incomum que eu havia encontrado em toda a minha vida. Segundo a moda da época, usava imensas "oreilles-de-chien" (penteado constituído de longas mechas que caíam sobre as têmporas), que lhe desciam até os ombros. O olhar típico dos italianos, especial e muitas vezes um pouco sombrio, não tinha a prodigalidade dos cabelos. Em vez de dar a impressão de um homem inteligente e fervoroso, passava mais facilmente a de alguém que não seria agradável encontrar num bosque.
A figura do general Bonaparte não inspirava confiança. O redingote que usava estava de tal forma puído, ele tinha uma aparência tão lastimável, que mal pude crer, a princípio, que aquele homem fosse um general. Mas acreditei na mesma hora que se tratava de um homem inteligente ou, ao menos, muito especial. Lembro-me que achei que seu olhar evocava o de J. J. Rousseau.
Ao rever esse general de nome peculiar pela terceira ou quarta vez, perdoei-lhe pelas exageradas "oreilles-de-chien". Fazia-me pensar num provinciano que exagera as modas, mas que, apesar desse ridículo, pode ter algum valor. O jovem Bonaparte tinha um belo olhar, que luzia quando ele falava. (...) O fato é que, para ser julgado favoravelmente, faltava-lhe apenas estar vestido de forma menos miserável.
Ele não tinha em absoluto o aspecto militar, agressivo, fanfarrão, grosseiro. Parece-me, hoje, que se podia ler nos contornos de sua boca, tão fina, tão delicada, tão bem-feita, que ele desprezava o perigo e que o perigo não o encolerizava.
(Trecho da biografia "Napoleão", de Stendhal, Ed. Boitempo, 2002)