Entrei no ônibus sorrindo e cambaleando, como qualquer sujeito ao lado de quem se pode dormir sossegado, e fui para o fundo, chacoalhando com os buracos do asfalto mal reformado. Havia no ônibus algumas caras mortas e três meninas no fundo.
Assim que sentei, me virei para trás. Vi o reflexo de uma das meninas, a mais tímida e de cabelo crespo preso, muito nariz, pela janela da lotação. Um reflexo cansado. Ela entendeu o jogo, gostou da brincadeira secreta, olhou de volta pelo vidro da janela. Estava sentada ao lado de uma menina que usava uma luva preta com espetos de alumínio e tinha um tridente enfiado na cabeça, entre os cabelos.
Esfreguei os olhos uma, duas vezes. As três meninas riram. O que estariam pensando? Duas sentadas juntas de um lado. A terceira sozinha do outro, muito séria, cabelo enrolado, a franja que lhe caía sobre os olhos me deixou momentaneamente sem tato: o corpo duro, a vida dura, muito mimo, filha única, muito álcool, pouca troca justa. O melhor tipo para uma pessoa séria desempenhar mal. Ela me chamou mais atenção do que as outras duas juntas: a do reflexo no vidro e a dos espetos na luva preta. Ela era minha alma flutuando por entre os dentes de um sorriso falso. Eu olhava para ela sozinho, do meu banco, cotovelos sobre os joelhos, e ela era um motivo para viver. Um motivo para rir. Era pouco e era tudo. Um motivo para.
Percebi que ria de mim entre os dentes. Começou a me apontar. Pensei: “Então quer jogar? Pois muito bem, vamos jogar”. Olhei de volta e ri o riso mais canalha, aquele que se dá para as balconistas em alguns dias menos quentes, quando se acorda desmotivadamente feliz e até as remelas nos olhos são como que poéticas. Ela olhou de volta e fechou a boca. A franja deu meia volta e foi cair na ponta do nariz. Um sopro para cima e a franja alçou vôo, e com ela foi minha ilusão. Eu ri, eu ri, eu ri. Aquilo. Como era bom. Olhar para ela e rir. Como era simples. Como era mentira. Um riso tão raro, tão procurado por becos escuros e ruas sem saída e fundos de garrafas e vidas sem saída e mortes sem entrada e náuseas escorridas de noites mal dormidas nos pátios de árvores ressequidas da boa e velha vontade de ser esquecido pelo tempo e desintegrado no espaço. Era um riso com tantos pequenos detalhes imersos que senti a obrigação de olhar de volta, boca espremida no desejo de ir adiante, dar o passo à beira do cadafalso, pisar firme o chão movediço e levantar os braços, olhar para cima, para o Grande Palhaço, e dizer que dessa vez passa, que hoje tudo passa, que eu passo.
Ela sorrindo de uma maneira tão pura e indefesa e revoltada com a tristeza que gritava tão mais alto do que as cordas e notas das boas rodas de chá e mesa. Mas rir de volta para ela era tão inadmissível como uma descoberta: de modo que se enfureceu. Levantou, o ônibus como uma centrífuga, e começou a gritar: "Pára essa merda! Pára essa merda! Quero descer! Puta merda!".
As amigas intervieram me olhando com a raiva acumulada em anos de falta de compreensão. Eu só conseguia rir e rir, gargalhava, fazia tempo que não. Ela então veio até meu banco, meteu sua cara bem na frente da minha cara, soprou mais uma vez a franja mal cuidada para longe da ponta do nariz e disse: "Amigo, posso saber qual é a graça?". Eu disse: "Você é". As amigas já tinham se levantado. "Deixa ele, é um bêbado!", gritaram. Olhei para minha menina, querendo convencer a mim mesmo de que era minha, já que era sozinha e eu também só tinha minha solidão, passatempo da raiva compadecida, então disse a ela: "Viu, moça... Ouça as suas amigas... Sou apenas um bêbado".
Levantei porque tinha chegado minha hora, como chega a hora toda hora para todo mundo que tem que ir embora agora e para sempre. Fui andando, cambaleando, escorregando pelo tédio da viscosidade noturna. Parei na frente da felicidade. Ela estava tão perto, tão acomodada, que me deu vontade de ser feliz junto dela, ou renegá-la como a um deus justo. Ela tinha cheiro e gosto e forma. Quem foi mesmo que disse que a beleza é a única coisa divina e visível ao mesmo tempo? Um alemão provavelmente. Os alemães são os mais incríveis mentirosos.
Mas pela primeira vez era melhor ver do que pensar na felicidade. Ela me estendeu a mão num sorriso que borrava a noite de branco, mas era um sorriso morto. Dei a mão a ela e disse: "Muito prazer, eu te amo". As amigas da felicidade, o espelho e o espeto, acharam graça e riram da minha cara. Acho ótimo que eu ainda tenha alguma graça para alguém. A felicidade abriu a boca e ficou assim, com ela aberta, sem me engolir. Depois riu do seu próprio ego inflado e resolveu brincar. Disse por fim: "Muito prazer, meu nome é Graça". "Eu sei... Eu sei...", disse a ela e desci do ônibus.
Assim que sentei, me virei para trás. Vi o reflexo de uma das meninas, a mais tímida e de cabelo crespo preso, muito nariz, pela janela da lotação. Um reflexo cansado. Ela entendeu o jogo, gostou da brincadeira secreta, olhou de volta pelo vidro da janela. Estava sentada ao lado de uma menina que usava uma luva preta com espetos de alumínio e tinha um tridente enfiado na cabeça, entre os cabelos.
Esfreguei os olhos uma, duas vezes. As três meninas riram. O que estariam pensando? Duas sentadas juntas de um lado. A terceira sozinha do outro, muito séria, cabelo enrolado, a franja que lhe caía sobre os olhos me deixou momentaneamente sem tato: o corpo duro, a vida dura, muito mimo, filha única, muito álcool, pouca troca justa. O melhor tipo para uma pessoa séria desempenhar mal. Ela me chamou mais atenção do que as outras duas juntas: a do reflexo no vidro e a dos espetos na luva preta. Ela era minha alma flutuando por entre os dentes de um sorriso falso. Eu olhava para ela sozinho, do meu banco, cotovelos sobre os joelhos, e ela era um motivo para viver. Um motivo para rir. Era pouco e era tudo. Um motivo para.
Percebi que ria de mim entre os dentes. Começou a me apontar. Pensei: “Então quer jogar? Pois muito bem, vamos jogar”. Olhei de volta e ri o riso mais canalha, aquele que se dá para as balconistas em alguns dias menos quentes, quando se acorda desmotivadamente feliz e até as remelas nos olhos são como que poéticas. Ela olhou de volta e fechou a boca. A franja deu meia volta e foi cair na ponta do nariz. Um sopro para cima e a franja alçou vôo, e com ela foi minha ilusão. Eu ri, eu ri, eu ri. Aquilo. Como era bom. Olhar para ela e rir. Como era simples. Como era mentira. Um riso tão raro, tão procurado por becos escuros e ruas sem saída e fundos de garrafas e vidas sem saída e mortes sem entrada e náuseas escorridas de noites mal dormidas nos pátios de árvores ressequidas da boa e velha vontade de ser esquecido pelo tempo e desintegrado no espaço. Era um riso com tantos pequenos detalhes imersos que senti a obrigação de olhar de volta, boca espremida no desejo de ir adiante, dar o passo à beira do cadafalso, pisar firme o chão movediço e levantar os braços, olhar para cima, para o Grande Palhaço, e dizer que dessa vez passa, que hoje tudo passa, que eu passo.
Ela sorrindo de uma maneira tão pura e indefesa e revoltada com a tristeza que gritava tão mais alto do que as cordas e notas das boas rodas de chá e mesa. Mas rir de volta para ela era tão inadmissível como uma descoberta: de modo que se enfureceu. Levantou, o ônibus como uma centrífuga, e começou a gritar: "Pára essa merda! Pára essa merda! Quero descer! Puta merda!".
As amigas intervieram me olhando com a raiva acumulada em anos de falta de compreensão. Eu só conseguia rir e rir, gargalhava, fazia tempo que não. Ela então veio até meu banco, meteu sua cara bem na frente da minha cara, soprou mais uma vez a franja mal cuidada para longe da ponta do nariz e disse: "Amigo, posso saber qual é a graça?". Eu disse: "Você é". As amigas já tinham se levantado. "Deixa ele, é um bêbado!", gritaram. Olhei para minha menina, querendo convencer a mim mesmo de que era minha, já que era sozinha e eu também só tinha minha solidão, passatempo da raiva compadecida, então disse a ela: "Viu, moça... Ouça as suas amigas... Sou apenas um bêbado".
Levantei porque tinha chegado minha hora, como chega a hora toda hora para todo mundo que tem que ir embora agora e para sempre. Fui andando, cambaleando, escorregando pelo tédio da viscosidade noturna. Parei na frente da felicidade. Ela estava tão perto, tão acomodada, que me deu vontade de ser feliz junto dela, ou renegá-la como a um deus justo. Ela tinha cheiro e gosto e forma. Quem foi mesmo que disse que a beleza é a única coisa divina e visível ao mesmo tempo? Um alemão provavelmente. Os alemães são os mais incríveis mentirosos.
Mas pela primeira vez era melhor ver do que pensar na felicidade. Ela me estendeu a mão num sorriso que borrava a noite de branco, mas era um sorriso morto. Dei a mão a ela e disse: "Muito prazer, eu te amo". As amigas da felicidade, o espelho e o espeto, acharam graça e riram da minha cara. Acho ótimo que eu ainda tenha alguma graça para alguém. A felicidade abriu a boca e ficou assim, com ela aberta, sem me engolir. Depois riu do seu próprio ego inflado e resolveu brincar. Disse por fim: "Muito prazer, meu nome é Graça". "Eu sei... Eu sei...", disse a ela e desci do ônibus.
Olhei pela janela. Ela estava ali, com a cabeça de fora. Tudo rápido demais porque mágico. A eternidade não dura mais que cinco quadros. Nem a beleza. O mundo ainda tinha vida na sua melhor metade. "Fique com deus", li nos lábios da Graça, da Felicidade. "Você...", eu disse de volta apontando, meu rosto como a parte preponderante que some na escuridão da vontade. Até mais ver, Felicidade.
Um comentário:
to triste pra dedéu
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