9.10.06

“desconforto torácico”

tenho chorado ao assistir a filmes antigos e trágicos
em tardes pretas e brancas
desvanecidas em cinzas cômicas.
tenho chorado ao ver pergaminhos tortos
formados por formigas prenhas de velhos vícios
sobre a mesa da cozinha listrada.
tenho chorado pelos espaços vazios
entre as pedras portuguesas
do centro da cidade.
tenho chorado ao consultar o dicionário
sobre o verdadeiro significado
da palavra colear.
tenho chorado mais do que o chuveiro
sobre poros d’água coleados de miragens.
tenho chorado ao ler cartas amareladas
que escrevi a mim mesmo
depois de rasgá-las.
tenho chorado ao lembrar de mãos
com unhas vermelhas e gastas
prendendo cuecas no varal de náilon.
tenho chorado ao me lembrar
de que não lembro nada
sobre nossa infância ancestral.
tenho chorado sempre que vejo alguém chorar
em silêncio escondido por mãos fratricidas.
tenho chorado ao jogar moedas de farpas
a um senhor que não movimenta mais as pernas
e vive dentro de uma caixa de papelão
– porque ele sorri mais do que você e eu.
tenho chorado por quartos escuros no meu coração
lotados de crianças enfartadas.
tenho chorado por jóqueis novatos de Belford Roxo
que ganharam os últimos dezessete páreos.
tenho chorado por pugilistas aposentados.
tenho chorado por bailarinas degadianas:
prostitutas em calos impressionistas.
tenho chorado por não conseguir evitar
a chuva tórrida de discussões hipócritas
que inunda de tédio a verdadeira mentira.
tenho chorado quando nuvens de dentes
sangram as gengivas da loucura paciente
de entregar um dossiê de rosas eufóricas
à faca azul celeste do Parque Farroupilha.
tenho chorado sentado sobre paradigmas
porque uma menina que lê à beira do lago
virou reflexo bêbado no espelho d’água.
tenho chorado porque falo e ouço falarem de amor
como se isso nos desse algum tempo a mais.
tenho chorado com falta dos meus pais
enquanto a barba cresce inadvertidamente.
tenho chorado ao ler Carlos Drummond de Andrade
quando ele diz que está preso à sua classe
e a algumas roupas vestidas de náusea.
tenho chorado por um pássaro de peito amarelo
que fez um buraco no chão de terra com o bico:
os olhos estalados por algo que não admito.
tenho chorado por tanta gente que nem conheço
que acabo vazio de tudo e, súbito, me esqueço
dessa falácia que é "conhecer a si mesmo".
tenho chorado tanto e por tanto tempo
confundindo vinho com ressentimento
e desconfiado de que talvez tudo isso
importe ainda menos aos ciscos livres:
cólicas dançarinas que norteiam o ventre
do sorriso estuprado pelos olhos do meu rifle.

2 comentários:

Anônimo disse...

viu o "laços de bronze" no sr marona? é um motivo bonito pra chorar.
bisous.

Garota do outro lado da rua disse...

... so queria dizer que estive aqui, e chorei uma lágrima minimalista.


beijos
Naira.