24.8.06

"baque de plumas"

e que farei da antiga mágoa quando
não puder te dizer por que chorei?
Vinicius de Moraes

sou a mosca da praça pública
que passa vomitando sua bílis
e anda escondida nas sombras.
agradam-me prédios chamuscados
e chafarizes desligados pela ferrugem.
fico feliz em saber que as nuvens
podem às vezes não passar de fraca imaginação.
mas andando sozinho pelas ruas
dias a fio nos fios de uma cortina
quando nenhuma pessoa me via
decidi adotar uma nova postura:
ser eu mesmo meu próprio poeta em construção.
aquilo por um lado parecia infantil
e talvez fosse, pois eu já era tio
mas é inútil continuarmos vivos
se não pudermos tentar olhar
para nós mesmos como um somatório
de tendências maquinalmente herdadas
por milênios de repetição exaustiva
e compreender o que no meio disso tudo
seriam as nossas próprias idiossincrasias.
por exemplo, no meu caso particular
que, sim, se eu te olho com desprezo
é bem provável que esteja apaixonado
porque a paixão é no fundo o elo frágil
entre a identificação e o menosprezo.
que, sim, eu sempre usarei os olhos
quando não tiver nenhuma outra arma:
é a última saída para os fracos de espírito.
que, não, não espere que eu te explique nada
pois com a astúcia típica dos covardes
defenderei-me de tudo com um sorriso
mas no fundo só te perdoarei pelas tuas falhas
e sempre te castigarei pelas tuas virtudes.
gosto de queimar a língua no chá e no café
para ter que lembrar ao mesmo tempo
de todas as dores com a boca ocupada.
sou do tipo que, se não está dizendo nada
considera o interlocutor ou muito inteligente
ou muito estúpido ou apenas incompreensível
ou monótono ou variações das supracitadas.

sou composto de tudo o que matei e amei.
boa definição para o caso só li em Vinicius de Moraes
no seu poema dedicado ao piloto Leonel de Marmier
trucidado em pleno vôo sobre as planícies de Oxford.

sou uma carcaça de aço quebradiço atingida nas alturas
um corpo flamejante que apesar de intenso é só um fósforo
e que a perigo, destituído de armadura, se funda frágil
para após uma série acidental de choques deliberados
convergir num ininterrupto baque de plumas.

Um comentário:

Anônimo disse...

... se eu te olho com desprezo é bem provável que esteja apaixonado porque a paixão é no fundo o elo frágil entre a identificação e o menosprezo... VC DISSE TUDO EM TÃO POUCAS PALAVRAS E PARA TANTO TEMPO PERDIDO E PASSADO ... e por fim ... não, não espere que eu te explique nada ... é por isto que eu te estimo "sou do tipo que, se não estou dizendo nada" uso frases feitas para não ser levada tão a sério ...

Beijos Sr. Marona