2.5.06

“anunciação do vento”

folhas verdes indecisas disfarçadas de perdão
sufocam caleidoscópios reciclados em ouro
tento soletrar o que só o vento pode explicar
um vento moreno com cheiro de sebo íntimo
que procuro à noite por entre minhas virilhas
mas elas não suportam o calor da culpa antiga
e se pelo menos eu tocasse um instrumento
se em vez de viver a vida vivesse um sonho
do qual pudesse me lembrar nesse momento
passaria então a vida trabalhando num réquiem
feito do aplauso das folhas, do lamento do vento.

mas se a manta verde só espera pelo meu fracasso
o vento reage em módulos sinfônicos simpáticos
e o fracasso ganha cor de presente-ultra-passado
e vejo o gato chinês de Baudelaire
na frente de uma rosa de plástico
no colo de uma loira com gengivas enormes
dentro de um vaso transparente onde bóiam meus olhos.

um gosto ruim e conhecido de cerveja quente
parecido com aquele do meu último engulho
afasta de mim a verdade que a noite me mentiu
mais uma vez e tantas vezes quantas forem fezes
no banheiro do meu peito de onde ecoam vozes
longínquas mas constantes.

espectros de pedaços da antiga massa disforme
vazam por trás dos motivos de retorno ao nulo
corpo coberto de cores sem nexo debaixo do lençol
da memória das tuas mãos sem unhas no meu rosto.

calendário incompreensível de ponteiros módicos
a vida passa enquanto nós fazemos planejamentos
aliás, não se esqueça da criança que você nunca foi
qual a diferença entre o que se vê e o que se sente?

o anjo piolhento de Rimbaud irrompe na falta de talento
com seus muxoxos delicados por debaixo do solo da pele
fazendo coçar as tristezas que foram engolidas pelo vento
de repente me vejo cercado pelo sorriso amarelo das folhas
pensando que não será tão mau, que não será tão violento.

me grita o vento:
no dia em que eu
não mais acordar
dormirás em paz.

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