11.9.05

“La Bohème para Nice numa Limonaire Fournier”

Nice chega para a sessão das 4 no Cine Palácio.
Nice tem 67 anos e há quinze é viúva.
Depois do filme, um Buster Keaton,
ela passeia pelo jardim do Palácio do Catete,
em meio a gansos, marrecos, merda de gato,
crianças que a fazem lembrar de que não lembra de mais nada.

Ela passa cinco minutos assobiando La Bohème numa ponte sozinha.
Mais outros tantos numa roda onde velhos e novos tocam chorinho.
Uma velha cantora lírica recebe aplausos de mais umas dez velhas.
Um rapaz magro e de óculo no cavaquinho chorando sozinho.
Uma linda menina de chinelos tocando flauta transversa.

Nice segue pensando que poderia se apaixonar por Buster Keaton.
Por seu ar desajeitado, por sua figura trágica, pelos seus olhos.
Depois lembra que o filme era de 1928.
Ainda faltavam 10 anos para ela nascer.

Então uma melancolia profunda ataca Nice.
Por causa dos dez anos que faltaram.
Por causa dos 67 que vieram.
Por causa dos poucos que
ainda faltam
sem nada.

Ela cruza o portal do Palácio.
Muitas crianças,
muitas velhas,
pipoqueiro.

É quando Nice ouve o som de uma melodia.
Uma música cheia de vida embutida,
tocada numa caixa de música
acionada por uma manivela,
onde lê-se na madeira:
“Limonaire Fournier”.

O homem que gira a manivela tem um forte sotaque francês,
cerca de 67 anos, poucos cabelos brancos,
um bigode muito fino e bem aparado,
uma boina e um colete de veludo,
naquele calor todo sem suar.

“Nossa, um francês legítimo!”, suspira Nice.

Do lado do homem há um garoto mestiço
que bate palmas a cada fim de música.
E o francês anuncia para as velhas:
“Esse é meu filho, senhoritas.
Foi isso... Não teve jeito:
caí por uma mulata”.

As velhas se aglomeram a sua volta alvoroçadas.
O francês se chama Pierre Janou,
Nice tinha ouvido alguém dizer.

Então ela se junta às outras velhas:
Uma gorda com duas Lulus de colo,
Uma outra magra com olheiras.
Nice se acomoda ao lado.
Metade envergonhada.
Metade hipnotizada.

Pierre Janou gira a manivela da sua Limonaire Fournier.
Nice sabe muito bem do que se trata:
“La Mer, 1938!”, ela grita bem alto.
Pierre lhe abre um sorriso delicado,
lhe inclina a cabeça
e Nice se apaixona.

Fica ali e ouve várias:
Petit Vin Blanc,
Ça c’est Paris,
Domino,
Pigale.

Nice dança quando toca Frou Frou.
Chora com La vie en rose.

A gorda das duas Lulus se encosta no seu lado e diz:
“Me diz uma coisa, esse homem é argentino?”.
Nice se afasta sem esconder o desprezo.
“Como argentino?”, ela pensa.
“Com que sotaque?”
“Com que charme?”
“Com que voz?”

No intervalo de uma música para outra,
ela se aproxima de Pierre Janou.
Joga R$ 5 dentro de uma caixa.
“Toca La Bohème pra mim”,
diz ao homem que,
com sorriso largo,
acende um cigarro,
aperta a bochecha de Nice,
que estremece e senta ao seu lado.

Cada um tem de volta seu passado.
Pierre começa a girar a manivela.
Algumas velhas dançam.
Outras batem palma.
Charles Aznavour,
com La Bohème.

Velhas suam saudades.
Crianças correm descalças.
Pombos por todos os cantos.
O sol derretendo ainda quente.
O pipoqueiro injuriado com a falta de clientes.
E Nice de olhos fechados ao lado de Pierre em 1928 finalmente.

5 comentários:

Anônimo disse...

...um viva a Nice que tem boas e lembranças.
Poeia pura. Achei lindo e melodioso.
Um Cheiro

natércia pontes disse...

quem são essas pessoas que deixam recados em inglês?

leonardo marona disse...

NÃO TENHO A MÍNIMA IDÉIA. PARECE QUE QUEREM VENDER ALGUMA COISA.

Anônimo disse...

Companheiro das Letras, sempre quando posso acompanho a Crônica do Dia, os dois intelectualóides são engraçadíssimos. Um forte abraço

leonardo marona disse...

CARO, ROBERTO,

ISSO PQ VC AINDA NÃO VIU MINHA VERSÃO DE DOIS REICHIANOS PEDANTES CONVERSANDO SOBRE A INFLUÊNCIA DOS CADARÇOS DE SAPATO NA DESENVOLTURA SEXUAL MODERNA.

SAUDAÇÕES E OBRIGADO PELA LEITURA.

LEO