27.4.25

"estrela do líbano"


a uma certa professora radical

 

se teu pai não fosse um peão,

não poderíamos, nós dois,

ser amigos, eu nem mesmo

falaria contigo, eu pensaria:

outra paulistana de família.

 

mas teu pai fala muito pouco,

veio do líbano cortar a cana

que as pessoas que detesto

bebem para saciar sua sede

pequena pela existência nua.

 

não quero aqui falar do teu pai,

mas vais logo ver que sempre

falo dos pais homens, os rudes,

os perdidos em meio à pólvora

da vontade de comer e de beber.

 

quando espocou a estrela fria

do teu desespero inteligente

sobre a nuca do meu fracasso,

me escondi por trás da fúria

que muito me ajuda na hora

de arruinar a luz assustadora

que desvenda nossas carnes

e inaugura a lama da intenção.

 

como amar alguém através

do pai desse alguém, um que

não se sabe e vem de longe?

como amar alguém pelo pai

se nem mesmo posso amar

meu pai, tão perto de mim?

 

líbano é longe da minha cruz

como a cruz é longe de jesus.

 

serei, diante da falta de chão,

a escada da tua prole antiga

que vem atendendo ao grito

e arrasta os cumes do mundo.

 

quero apanhar e ser cuspido

na Escola Normal Superior

do teu cheiro de terra fértil

com o risco de ilusão e fogo.

 

serei, diante do Grande Salto,

aquele que, agachado, conta

as mil pistas do bom futuro

nas mil pintas do teu corpo,

como o condenado à morte

rabisca seus dias na prisão.

 

serei, diante da impossibilidade,

um caminho pedregoso de alegria

até o teu pico de luz e sombra rasa:

sonho em que se anda por lugares

agradáveis não fôssemos os cegos

impedidos para sempre de chegar.

13.4.25

"poema escrito após um ano sem escrever poemas"


cogumelos dissolvem na viagem lúdica

a solidão residente na vontade de viver.

vontade de viver é hoje uma expressão

canhestra, assim como hoje é canhestra

a palavra canhestra e o amor romântico.


sozinho gosto mais de ouvir joão gilberto

do que acompanhado, pois sozinha é a voz

– sempre ao vivo – sob a foz do limite zen.

argumentos encaixo em músicas para victor

e tomo finalmente um cafezinho sem açúcar,

pois que a vida sem açúcar é uma vida adulta.


no bairro peixoto a vida é adulta e sou adulto.

peço amavelmente um cafezinho sem açúcar,

inclusive pago a conta por trás de um sorriso,

para que o jovem garçom pense: é um adulto.

sou adulto – entorto a face enquanto a língua

imparável resvala o ápice do amargor, afinal,

esta é uma face adulta, num rosto sem açúcar.


durmo em muitas casas, camas, sofás bonitos,

tenho amigos e amigas, mas não posso agora

que me entendam nem sequer que possam ter

uma chance de operar anseios em meio ao pus

que reluz na doçura de um mau hálito matinal.


afastado da vida vulga por loucura, irei de bus

até sampa, dar uma volta com os surrealistas,

rezar aos deuses antigos descalço no trianon.

ver o lobo, diogo porra, calixto, aye, januário,

julia linda sempre, camila kiddo e tantas caras

ainda não vistas que verei com olhos de comer.


poetas proletários preenchem meu fraco coração,

orgulhosos das solas gastas e das camisas escuras.

decepcionados, nunca cabisbaixos, às vezes riem,

e quando riem seus dentes faltantes enchem o céu

de ternura e de uma lentidão que torna a vida fácil.


encontro prosadores e prosadoras da secreta palavra,

pessoas que gostam de caminhar: penso num passeio

com leo alice marília manacorda ana elvio paulinho

carol dirceu leo chagas negro leo e se aqui estivesse

o carlos orfeu comigo eu diria carlos orfeu monange.


um beijo na testa da zil com pequenas implicâncias

de um amor tão esquecido que é preciso se lembrar.

sonhar à noite no coração da máfia dos sentimentos

com arranha-céus de paz e sacrifícios sem punição.

crer num futuro promissor fora dos eixos, no poder

das conexões mais sutis entre os seres sob a terra.


porque nem tudo que prende segura, à noite a lua

se encheu de sorrisos e prefiro a faca, a lua turca,

uma bússola para se achar também para se perder.