dentro de mim há algo que precisa
matar o rico,
constranger ao menos sua
existência e seu pudor
falso como é falsa também sua mágoa
concentrada
enquanto grito e falo coisas
ruins como tire as mãos
de mim ou lhe darei um soco na cabeça, e me torno
um ex pugilista atual comediante
ácido acima do peso
bebendo vinhos e comendo
gastronomias impossíveis
que nunca poderia pagar mesmo
assim pagar, consumir,
comer aqueles pescoços de garça,
dentro de um silente
assassinato, com um cinzeiro de
ouro numa das mãos,
os olhos marejados pela explosão
de raiva por no fundo
e acima de tudo querer ser também
rico e fazer de tudo,
mesmo que por uma noite, com meus
bolsos estufados
com duas notas verdes e grandes –
como são grandes!
e uma menor alaranjada, esta
suja e feia e corrompida,
e há essa imperdoável assunção
de algo que trago aqui
comigo e não me perdoo por isso
e quero, não morrer,
mas matar o rico e estar com ele
e cuspir nele e amá-lo,
andar por cima dele e dos seus
conceitos dentro de vasos,
de mãos dadas com uma sombra sem
a qual não se pode
acreditar porque realmente as
coisas não parecem reais,
e no meu mais íntimo e longe dos
meus dentes azulados,
trago intacto um pássaro magro e
muito feio, um tísico,
e com ele tenho depositada a
coragem e o erro de falar
e brigar e me ensanguentar em
rouquidões cancerígenas
e querer matar e estar ao mesmo
tempo com as pessoas,
acima de tudo porque alguma
coisa precisa acontecer,
tenho as narinas arreganhadas e
já desprezo as pernas
que me trouxeram até aqui nesse terrível
cavalo manco
para me cuspir num mundo
desprezível em que se age
como se alguma vez se tivesse
sabido, compreendido,
mas os possessos não sabem o que
lhes injeta os olhos,
eles apenas sabem que cometeram
absurdos impensados
porque lhes assusta no âmago o estar
por aí deste modo,
destemida, incômoda forma de
manter amigos distantes,
perdendo o prumo diante de uma atitude
programada,
voltando a morrer e ao mesmo
tempo tentando viver
dentro desse corpo em que não
cabe o que prolonga
essa ruga que se estica já um
pouco abaixo dos olhos
e permite dizer estou vivo, destruo,
estou vivo, destruo,
e de um modo peculiar amar até o
que de mim escorre
para o fim com os escombros e as edificações ciganas.