10.7.14

"marina completa quatro anos"





vagarosamente, mas com olhos rápidos,
há uma insuperável metamorfose que,
se deixa de nos espantar, é porque
é uma metamorfose também da percepção,
de modo que tudo em volta começa
a ganhar um novo critério, e estarás
muito em breve acostumada a não saber
do que és feita, pois um novo critério
afetará novamente a tua percepção
cada vez mais deformada e, portanto,
com nova forma, porque entenderás
em teu próprio corpo, agora pequeno,
que o que deforma é também o que dá forma,
e nesse imbróglio de peles saltitantes
e partículas minúsculas em plena anarquia
saberás de onde vens cada vez menos –
isso poderia ser triste e talvez seja um pouco,
mas ao menos vale para todos nós e haverá,
contudo, algo mais espesso, como se fosse
uma espécie de secreção, escuro, fraterno pacto,
corrente em nossas alterações e nossas perdas,
e dentro de meu próprio caos incompreensível
saberei que haverá também o teu, porque viemos
dessa mesma calma, que esqueceremos juntos.

8.7.14

"jantar num restaurante chique"





dentro de mim há algo que precisa matar o rico,
constranger ao menos sua existência e seu pudor
falso como é falsa também sua mágoa concentrada
enquanto grito e falo coisas ruins como tire as mãos
de mim ou lhe darei um soco na cabeça, e me torno
um ex pugilista atual comediante ácido acima do peso
bebendo vinhos e comendo gastronomias impossíveis
que nunca poderia pagar mesmo assim pagar, consumir,
comer aqueles pescoços de garça, dentro de um silente
assassinato, com um cinzeiro de ouro numa das mãos,
os olhos marejados pela explosão de raiva por no fundo
e acima de tudo querer ser também rico e fazer de tudo,
mesmo que por uma noite, com meus bolsos estufados
com duas notas verdes e grandes – como são grandes!
e uma menor alaranjada, esta suja e feia e corrompida,
e há essa imperdoável assunção de algo que trago aqui
comigo e não me perdoo por isso e quero, não morrer,
mas matar o rico e estar com ele e cuspir nele e amá-lo,
andar por cima dele e dos seus conceitos dentro de vasos,
de mãos dadas com uma sombra sem a qual não se pode
acreditar porque realmente as coisas não parecem reais,
e no meu mais íntimo e longe dos meus dentes azulados,
trago intacto um pássaro magro e muito feio, um tísico,
e com ele tenho depositada a coragem e o erro de falar
e brigar e me ensanguentar em rouquidões cancerígenas
e querer matar e estar ao mesmo tempo com as pessoas,
acima de tudo porque alguma coisa precisa acontecer,
tenho as narinas arreganhadas e já desprezo as pernas
que me trouxeram até aqui nesse terrível cavalo manco
para me cuspir num mundo desprezível em que se age
como se alguma vez se tivesse sabido, compreendido,
mas os possessos não sabem o que lhes injeta os olhos,
eles apenas sabem que cometeram absurdos impensados
porque lhes assusta no âmago o estar por aí deste modo,
destemida, incômoda forma de manter amigos distantes,
perdendo o prumo diante de uma atitude programada,
voltando a morrer e ao mesmo tempo tentando viver
dentro desse corpo em que não cabe o que prolonga
essa ruga que se estica já um pouco abaixo dos olhos
e permite dizer estou vivo, destruo, estou vivo, destruo,
e de um modo peculiar amar até o que de mim escorre
para o fim com os escombros e as edificações ciganas.