18.5.20

“miguel de jordão (aka michael jordan)”



é como se um deus amarrasse cordinhas
nas pontas finas da sua maior invenção.
dois pés, duas mãos, um senhor quadril,
que dança como sonhou aquele alemão.
então, enfim, é como se houvesse deus.

penso em deus porque é difícil imaginar
que um só ser vivo dance o tempo todo,
sem que mistério maior esteja por trás.
quando acorda, dança, quando dorme,
os sonhos de deus vibram em algazarra.

quando eu não tinha meu deus próprio,
você cuidou de mim como um sentinela.
sem saber, eu trazia deus em figurinhas,
e, de noite, rezava a deus pela sua mão.

com nome de anjo, inaugurou a beleza
no coração seco de crianças sem brilho.
único a voar ao vivo, longe das lendas,
carrega consigo a promessa de um rio.

quando fala, é como um moisés negro
fundando a escritura de um povo triste.
quando sente dor, quando trazem dor
ao seu corpo e ao seu espírito de força,
é como se deus chamasse para brincar
as crianças, alegres da ilusão de poder
vencer deus através de um ventríloquo.

sou grato pela fé que sem saber havia
nos anos solitários sem deus ou diabo.
agora sim entendo que eu não morria,
que ao ver sua dança eu via o milagre.

14.5.20

“um poema japonês”


vez por outra um anjo torto
surge aos gritos e eu escuto,
pois sou da legião dos tortos
e não entendo o que sopram
os anjos plenos de sussurros.

penso eu que todo anjo torto
tem um quê de anjo japonês,
daquele que brilha de sujeira
e funda vida através da lama.
anjo sem ascese – anjo-buda.

todo japonês é poeta, aquele
que tatuou gatos nos braços,
pertence à máfia e assassina,
também coveiros, facínoras,
bem mais até que os poetas.

queria ser o japonês de mim,
saber que a corda só faz som
quando bem esticada e assim
ter na mão tesão de esticá-la.

um anjo torto veio e lambeu
minha ferida aberta e podre.
seja bem-vindo seu enxofre,
que cura dor com luz e breu

9.5.20

“um poeminha ruim”



quero a coragem agasalhada,
ser o meu pequeno sabonete.
calma, calma, diz a serpente.
você jogou pedra na estrada,
agora vai recolher as pedras,
esquecer a hora da chegada.
um poema feio pode servir,
um amor pequeno, limpeza
para o ódio imenso que era
viver sem poder viver aqui.
agora você está e não sabe
o que fazer com a presença
abandonada com as pedras
que davam ar de resistência.
jogar a toalha, só dá na luta,
essa não vista e que se deve
lembrar na alegria e no luto,
sentir como quem tem febre.
chamar o nome verdadeiro
do que sem nome te matou,
repisar a tua glória rasteira,
rasgar a pele do teu horror.
por odiar poemas rimados,
abandonava o falso critério
com que se carrega o fardo,
peso fúnebre do que é sério.
mas um braço aqui te pega,
te traz leve no pensamento.
ainda odeia, mas não é cego,
ainda é burro, mas é atento.
vem o dia, de hora em hora,
você não vê, mas ele acena,
em que a ira perde a espora
e a pouca sorte será poema.

8.5.20

“gary snyder faz noventa anos”




recolher um verso sob o sol
e outro, molhado de chuva,
deixá-lo secar com as frutas.

felicidade é essa viagem
com pedras nos sapatos
e um samba no coração.

não ligo que o mundo
esteja perto do seu fim
e que nunca tenhamos
sabido como estar nele.

eu quero o bafo bruto
do seu frescor bucal,
eu quero ouvir o hino
de todas as entranhas.

nos sonhos mais úmidos,
corpos caem de muitos
metros, sempre de pé,
depois correm de volta
para dizerem como foi.

como um gato que sobe
em minhas costas duras
ou um trompete agudo
quando bate meia-noite.

como a horda de vidas
na fila de uma atenção
miúda e tão ambidestra
nos cumes da gratidão.

quase raro o pendor
que compartilhamos
em cacos de versos,
água aberta que rola
diante da cachoeira
do que está por vir
e ainda não vemos.

água que se bebe
na sede invertida,
areia de projetos.

e sinto que as tardes
cozinham os alardes
enquanto eu aprendo
a ficar ereto, sentado,
com garras fincadas
nas costas dos gritos.

comer os versos como
quem come uma fruta.
então engolir sementes
para gerar no estômago
uma existência inédita.



5.5.20

“amar o monstro”



é muito difícil lamber o próprio monstro,
dar a ele de mamar, dizer te amo, monstro.
amo a sombra que paira da tua presença,
quero que estejas para sempre aqui comigo,
não quero te preterir em relação ao anjo.
na verdade, te conheço bem melhor que ele.
na verdade, fostes sempre meu mais fiel
companheiro cuja presença eu percebia.
quero sentir teu remédio amargo porque
os sinos da serenidade ainda não penetram
os ouvidos do meu sentimento mais fundo.
habitas meus sonhos com fidelidade serva,
onde estou sempre à procura da mochila
num ambiente cáustico de luxúria estéril.
já nos sonhos leves, sem a tua presença,
acordo iludido pela espiritualidade rasa
que pretendo ser minha, mas é tua falta
que produz uma ausência em mim de ti.
nos sonhos bons levo a mochila nas costas,
ela não pesa porque não tem nada dentro.
ao passo que a mochila procurada em terror
é cheia de tudo o que eu preciso e não tenho
e está sob o poder do monstro que eu amo.
quero amar-te como a ferida que me lembra
a queda de quando pensei que me seguiam
os anjos que não falam meu pobre idioma.
quero sorver, quente, tua sopa de tamanco,
quero lustrar teus chifres em pleno pecado,
lançar a carta que me devolverás marcada
pela fúria do teu corpo cascudo de leveza.
trazer-te na crista de uma onda gigantesca,
beber essa água suja com que afogaste a vida
falsa e angelical que me matou sem reserva.
curar a pele do teu combate contra o mundo,
fazer teu mundo girar na órbita da minha ira,
cantar tua ira de pé e com as costas curvadas
porque sem ti arregaço as calças da esperança
e afogo a chance de um dia estar no controle.
então abre os olhos, eu quero ver teus cílios,
quero entender a dor que espelha meu vacilo,
quero saber se ainda me amas com firmeza,
quero ouvir teus estrondos por cima da vida
e te embalar como o bebê que eu nunca fui.

3.5.20

“no dia do teu aniversário”



quero manter a criança viva,
levando o adulto pela mão.
escuto os mantras matinais
que vêm de uma voz doce.
penso na voz agora morta,
se era doce ou se era firme
ou se era a voz que dizia:
meu filho, não faça isso
com tua vida, estou aqui,
tu não te lembras de mim,
mas eu estou aqui, escuta?
a tal criança morreu no dia
em que não enterrou a mãe.
os adultos vieram depois
com sustos e votos úteis
para pisar firme a estrada.
bebi vinte anos tua morte
e quase me esqueci de ti.
mas hoje sei algo bonito:
os espíritos não morrem.
meu corpo então padecia,
mas a voz que eu esqueci
me dizia: estou viva aqui
no olho do esquecimento,
no buraco da tua falência.
sem ser criança ou adulto,
sigo à procura do teu luto,
para ouvir a velha cantiga
e criar outra vez tua voz.


1.5.20

“mãe maleva”



quando estou triste e nada resta,
muito resta, mas não posso ver.
então fecho os olhos, não posso
arrancá-los, eu tenho que viver
com o que eles já viram e o que
esqueceram e era fundamental.
é feia a cabeça do meu passado,
chupa limo minha mãe maleva
na sacada suja do esquecimento.
emparedado dentro da ausência
mastigo a planta do meu sonho
na prece de pesadelos heroicos.
quando sou ruim com o mundo,
o mundo termina, então começa
a febre ruidosa de uma criança
sem cabeça que precisa beijar.
mas não se beija sem a cabeça,
explodo vontade pelas canelas,
aceleram por dentro das veias
a natureza exata dessas falhas.
a mãe maleva que traz o verso
e rasga a roupa e perde tempo
é quem me mata depois avisa:
ouvir com os ouvidos de ouvir
a canção popular dos isolados
é a única forma de trazer aqui
a chande pequena de um fado.