19.12.19

"sagitário"



no fim dessa corrida
– mas ainda não é o fim, quem vai saber –
é possível ainda olhar dentro das mãos e ver
aquela coisa minúscula e frágil que não é um bebê
ou mesmo a mínima partícula infinitesimal
que nos conjura sermos assim
e que trazemos através de todos
os tombos de joelhos no chão,
mas talvez não seja fácil explicar
porque são acima de tudo olhos
que se fecham ao que enxergam
e se abrem ao que não se pode ver.
são mãos que afastam o que alimenta
e arrastam pequenos demônios
com a cara pelo chão
do qual jamais nos afastamos muito.

nos encontramos todos no chão,
voamos sozinhos, decolamos destrezas,
mas nos encontramos todos no chão.
no momento todos voam e dizem: estamos juntos.
que coisa fodida, ser criança já naquela idade
em que um bancário diria ah como estou farto!
tanta coisa gira na cabeça e não consigo pescar,
reter as ideias boas como um bebê de colo
– estou falando aqui demais sobre bebês, não?

nos debatemos num flashmob acinzentado
com as gargantas na corda de mais uma década
(os anos loucos, eles dizem) – queremos vencer
a corrida, mas já não temos os pés confiáveis.
vejam só os buracos aos quais somos levados
dentro da nossa peculiaríssima impressão
de que estamos fazendo tudo certo apesar
de estarmos vivendo tudo errado – mas será?

sabemos como seria intolerável
se tudo se encaixasse, não é mesmo?
é uma palavra pastosa, como a pasta dessa coisa
pequenina como um pássaro recém chocado ao vidro da janela,
essa que teimo em driblar, fazer esquecer a minha volta,
que engulo como pílula especial de um sci-fi dublado,
nesse ritmo rebolante e hang loose que nunca esperariam de nós,
vejam que beleza, ficando velho, como os dentes sangram
do espancamento filosófico de cada um de nós,
das coisas que não se acertam, dos despejos
de alma e de geografia que nunca se acabam,
que nos alimentam na verdade com essa pasta volumosa
que trazemos de bruços enquanto o assaltante com faca
nos chuta no chão de todas as nossas esperanças –
o milagre, essa palavra que soa como desistência,
mas não é, somos nós aqui, esse milagre, essa coisa triste
que não sabe e diz, que não sente e sofre,
que segue andando por aí e se pergunta muitas vezes
aonde irão nossas cabeças, essas belezuras empoeiradas
que limpamos como estantes velhas de metal,
que enferrujam as fotos da nossa emancipação recente,
uma banda indie argentina incapaz de lotar um vagão de trem
com tamanha empolgação juvenil dos seres banalizados,
santificados por estranhas conjunturas, empoderados e mudos,
correndo de olhos fechados e boca aberta para ultrapassar
a linha desértica dos afetos diários que se esvanecem
como os bares de fim de noite onde se toma sopa
– somos nós também ali na fila da sopa, alguns bem arrumados,
outros nus, os pós-futuristas, discorrendo banquetes.

15.12.19

“bichita”



a paixão é um dormir sem descanso
estou na rua ao sol cheio de frutas
sempre na rua penso minha paixão
é muito grande na rua ela explode
te amo tanto na rua que a cabeça
fica grande e eu fico mais belíssimo
te amo tanto na rua que não gosto
se volto para casa e te amo menos
não é bem isso eu acho que a rua
me lembra da alma mendiga doutr’
ora o sol de cueca fazendo um beiço
o medo que sinto na rua me torna
criança e em casa eu sou um adulto
essa gente de pelo e cabeça grande
e quando chego em casa e vejo você
eu devo pensar aqui ela não combina
porque você é a infância estrangulada
que acaricia as veias do braço infinito
minha fé rarefeita nas bigornas em flor.

6.12.19

“a cachorrinha cagou tudo: uma novela paulistana”



percebo que estão todos insanos,
amo profundamente minha vida
por alguns instantes passageiros.

eu também, ao amar, não estou
longe da insanidade, ao contrário.
abro-me a ela então ela opta por
alguém ao meu lado, alguém mais
maduro, alguém que se defenderá
melhor que eu neste mundo cruel.

a insanidade, comumente, escolhe
mais bem preparados hospedeiros
do que eu poderia ser, com minha
para todo sempre confusa ideia do
que exatamente estamos fazendo.

e quem sabe agora que os sensatos
dizem não há mais futuro com que
nos preocuparmos e iremos todos,
loucos e sóbrios, para a funda vala,
é justo que agora, justamente agora,
os guias plácidos da última década,
que miravam uma fantasia gratuita
para que houvesse um amor calmo
entre seres humanos de fato únicos,
eu os veja completamente pelados
agarrados ao velho mastro de guerra,
uma velha guerra para sempre perdida,
cegos na proa de um navio amotinado.

seria justo pensar nisso enquanto subo
a avenida angélica – que nome bonito
para uma grande rua num lugar onde
não se pode entender mais nada então
vamos todos para este lugar à procura
do que não se pode entender em nós.

subo, portanto, a angélica, que eu uso
como a espinha dorsal do meu amor
por esta cidade que me acolhe como
a baba de um camelo sedento ao sol,
de um deserto imaginário que convida
a todos os adeptos dos livros velhos,
para gozar elegantemente a dissolução
– o que ainda assim é o amor e a sede.

subo atrás de novos amigos e amigas,
quem diria você, com idade de perder
os dentes e entender as coisas da vida,
fazendo amigos num lugar incomum
e não entendendo nada, deixando-se
espancar docemente no ringue da vida,
um cassius clay bailarino das opções
brincalhonas, finalmente não levando
quase nada muito a sério a não ser este
que sempre será o caminho que friza:
é preciso levar a corda solta – e confiar
no burro silencioso dos passos escuros.

é uma noite medonha que mais uma vez
se anuncia e em nossas entranhas vibra
talvez a nossa única chance de perdurar.
por enquanto rasgamos juntos as roupas,
no grande vazio onde assaltamos os trens
em chamas rumo a lugar nenhum, ainda.

bancos parecem lanchonetes, os parques
são usados para telefonemas de trabalho
enquanto eu tiro e cheiro minhas meias,
piso os pés no chão e me sinto preparado
como um brancaleone capaz de se fazer
de morto, mas também de esperançoso.

lanchonetes parecem bancos, aguardam
noutra esquina talvez os ganchos que por
ora soltam tua carne por outra mais fresca.
mas nos meus sonhos só vejo as mãos que,
assustadas, agarram o não sei que de vivo
que trazemos ainda em nossas veias ruins.

outra vez lamenta futuro a nova década,
não consigo pensar em nada além de que
escapamos o tempo todo e estamos juntos,
agarrados, não há outra palavra, à suspeita
sintonia fina dos nossos destinos a perigo.





23.11.19

“sobre como ler escondido em livrarias”


para os poemas curtos
                       e afiados,
 como adaga que mata
                           os reis,

                        apenas abra o livro
e deixe franzir o sobrolho
(anote: que linda palavra
                     é a palavra sobrolho)
como se estivesse à procura
de algo na ficha catalográfica,
                 algo de muito estranho
na ficha catalográfica,
           algo para um cliente louco
na ficha catalográfica.
           não menos estranhamente
alguns poemas geniais
               são mais curtos do que
uma ficha catalográfica.

para os romances aqueles
que começam muito bem
você os deve ler fumando
do lado de fora da livraria,
um cigarro atrás do outro,
ou então deve ler tudo alto
sempre ao lado de alguém
que não se perceba cercado
como se estivesse falando
com alguém de si próprio:

acordei de sonhos
                       intranquilos.
hoje mamãe
                              é morta.
sou um homem
                              doente.
porque infinitas são as
                  possibilidades
                  de alguém sofrer muito
- assim como você sofre -
                   nos romances geniais.

as tragédias devem ser lidas
aos brados frente a todos os clientes
e inclusive
                              os convocando.

pode ser que pensem
que estás lendo outra
notícia de jornal
                                       ou então
sobre o jogo do
                                       mengão.
pois as tragédias, como sabemos,
sempre passam despercebidas
e são o encanto
                                  das massas.

é preciso pensar que
                                   pode muito bem
acontecer de demitirem você
alegando justa causa ou a boa e velha
                                             vadiagem.
e com dignidade você responderá:
não há médico que não goste
                                              de sangue
não há toureiro que não durma
                                          com o touro
      não há marinheiro que fuja
                                           da miragem.

então longe da livraria, perto da vida,
longe do negócio, dentro da literatura,
será sua vez de saber que está vivo.

6.11.19

“nos mudamos para copacapana”



adoro as legendas
            das caixas de mudança.

fazemos essas legendas
  para que possamos rir
  um pouco
como às vezes fazem
                                 os presos
dos campos de concentração
        nos intervalos entre
        carregar uma pedra
       e levar uma pedrada.

infelizmente, não conseguimos.
                     inverno profundo.
calor e afeto.
coisas raras
                         sem qualidades.
                    coisas importantes
que pesam.
sem lutas
                       não há derrotas.

conforme
             o desespero
                              e o cansaço
assaltam os corpos
                          dos retirantes,
surgem as melhores legendas:

sei lá o que tem aí.
      por que fomos casar?
agora fodeu de vez.

essas se parecem
                    com as legendas
de um dia comum
                  na cidade fascista:
princesinha
                     ariana
                                  do mar.


31.10.19

"trinta e sete"


para juca, mi madre

é importante agora
não ser inteligente
a ponto de suicídio.

a humanidade chegou
ao ponto em que viver
é a GRANDE MORTE.

assim a única forma
de não ficar triste
é ficar muito puto.

tenho um ano mais
do que minha mãe
quando ela morreu.

veja bem não é triste
talvez seja outra coisa:
ridiculamente
                      heroico.

como se eu fosse
uma criança
      que também pode ser
      o irmão mais velho
      da sua própria mãe.

que velhinha
         você teria se
                     tornado?

estaria ainda roendo
as unhas enquanto
o câncer não lhe
roia as entranhas?

estaria vibrando
em silêncio bruto
com os mapuche,
os índios urbanos
à linha do equador?

diante dos mil
                espíritos
sobre sua cabeça
                ancestral
rogando dilemas
    contra os guarani
que era o seu povo
mais que eu e que
                 meu pai
dois feirantes italianos
a quem você enviava
cartas escritas
com letras infantis
redondas como balões.

eu espero ainda
por essas cartas
feito marco polo
esperando china.

mas isso não poderia
ser verdade e por isso
fica bem neste poema.

           agora me sinto
como o pai de cristo
          que no entanto
jamais será deus.

com muitas promessas
de compra e venda
acabei me tornando
essa favelinha rural
nos consórcios das
        minhas crises.

  sopro-me palavras
           doces
     de resistência
que me atiram pedras
  e transpiram sorte.

na avenida paulista
               caminho
como um índio
        e lembro de ti
guarani a tribo traidora
mas você dizia

                    é mentira

a guerra suja
é também
       a guerra
mais honesta.






29.9.19

“hesitações de um que duvida”



a noite enforca os parapeitos
dentro da cidade, mas também no mato,
alguém se move lentamente
sobre a fina dúvida de um suspiro.

alguém no fundo da lenda que não surgiu
encobre de gelo uma parada de ônibus
com seus holofotes ao contrário de deus.

é frio quando qualquer um pode
– de repente e muito embora
permaneça no pescoço a cuca –
desaparecer do árduo convívio.

mais estranho é o que diremos quando
o improvável que nos ronda acontecer:
isso é absurdo, não suporto, morrerei.
mas dias depois ancoraremos bombas
em portos repletos de marfim em pó.

é sempre frio quando a noite enforca
a euforia dos segundos em delito
ao tocar-se a beleza pela primeira vez.

vejo brilhar os olhos que derrubam
as manhãs por trás da sua película
que desespera no parto do grupal.

somos uma gangue de medrosos
que desejam a coragem coletiva
mas entregam parágrafos de aço.
este deveria ser um poema curto.

18.8.19

“cabelo virou moeda”



agora eu chupo coices,
outro dia me disseram
que mesmo quase velho
parece que tenho ainda
meus vinte e oito anos.

saturno só volta uma vez,
pensei lembrando a idade
em que devia ter morrido.
no destino de um saturno
que agora não volta mais.

de lá pra cá não teve um dia
em que dinheiro não fosse
o assunto do dia, principal
ator da noite: pessoas boas
não têm dinheiro, eu dizia
sem ser bom e sem dinheiro.

agora cabelo virou moeda
uma força estranha tornou-
me apto a usar a expressão
força estranha sem ser rei.

longe da catapulta, o tônus
cospe no olho da inocência
que ainda estica meu rosto
me lembrando aqui saturno,
aquele pai caixeiro-viajante.

pai este que, ao retornar
bastante decepcionado,
fez rachar a ampulheta
e meteu o pé na estrada.

aqui estou, vejam vocês,
dez anos depois do que
pareço agora, abusando
de rimas bem canalhas.

em apagamento sonhava
com um sol esplendoroso,
bola de fogo toda minha.
um dia apavorei o fogo,
arregalei-me e desesperei
porque o sol era horrível
e agora ele era todo meu.

perco cabelos, ganho asas,
sou cada vez mais parecido
com aquelas águias feias
tão bonitas nas bandeiras
das nações autoritárias.

recompõem-se o fígado,
disseram-me uns também.
quando eu disse no entanto
fumo feito uma locomotiva,
disseram não se preocupe,
pulmão é morte mais lenta.

rio e faço planos que se apagam
no decorrer de um dia capitalista
que me empurra na carne moída,
na farofa que trago em separado.

não são estupendos os planos
daquele que só tem um dia.
o mais improvável de salvar
uma vida perdida é ter vida
que valha a pena ser salva.

olho meus companheiros
neste western mal pago
em que chocamos esporas
mas que ninguém impôs.

relíquias do fim do mundo,
é como prefiro vê-los todos,
mas os abutres que rondam
também são meus primos.