28.3.23

"despejo de homero"


ei, homero! não sou mais menino.

não é justo que você queira

parir meu destino.

você já fez a sua parte

me pondo no mundo,

que agora é meu dono, homero,

e nos seus planos não estão você.

 

eu vi o sorriso das crianças

quando elas te assassinaram,

depois cantaram aos prantos

seu canto de enterro e paz.

 

quando martha argerich encarna chopin

ou gary peacock toca com seu trio de jazz,

mais precisamente com jarrett e dejohnette

(pegando apenas dois exemplos en passant)

perceba, homero: ambos fecham os olhos

e abrem um sorriso curto, infinito; é ali

que você morre e nós passamos a viver.

 

amar é também matar, mas isso aqui

não entendemos; viemos das tribos,

mas nos enfiaram um corpo pedante

por cima da nossa selvageria divina.

 

quando o gigante gentil erasmo carlos

escreve que a proteção desprotege

e carinho demais faz arrepender,

ele está arrancando seus dentes do crânio

(me refiro aos dentes de ouro de homero)

para que as crianças façam dele um colar

bonito para enfrentar a feiura do mundo

que, quanto mais pensamos em você,

mais feio fica, mais gente heroica mata,

mais gente bonita morre ou se suicida.

porque o mundo depois de você nunca

mais foi o mesmo e é muito duro estar

sem você, papai; posso te chamar assim?

 

seus heróis hoje são milicianos obesos,

com pochetes cheias de morte e medo,

porque eles também tem medo, não são

heitor ou aquiles, nem mesmo príamo.

mas um amontoado vazio de menelaus

buscando vingar com sangue a derrota

de perder a esposa para um vagabundo.

 

mas o que dizer dos frágeis, papai homero,

hoje alvo favorito dos heróis deformados

em fantoches da desvirilização empurrada

goela abaixo em homens devotos do poder

– testosterônicos jagunços reféns de eros?

 

dos frágeis espero o sorriso assassino

que cortará com delicadeza a sua pele

e observará suas veias turcas pulsarem

cada vez mais lentamente a rara beleza.

 

eles farão de você estandarte de foice,

deles virá uma nova beleza que não é

tua beleza mais, é outra coisa distinta.

 

porque os frágeis não sabem bater, papi,

eles não são musculosos ou donos de si.

mas tem uma coisa que eles fazem bem

e é por si uma novidade: sabem apanhar.

além de tudo isso eles apanham sorrindo.

 

seus heróis não são capazes de gargalhar

nem mesmo quando vencem, por isso dê

licença, pai, a toda gente mutilada da sua

guerra que nos fez sofrer até aqui a beleza

cínica nas mãos dos pedantes que cantam

em seu favor, usurpando a nossa beleza.

mas por ora a barra ainda tá pesada, papi.

e quem tá na chuva, tem que se molhar.