29.9.20

"devagar também é pressa"


passei tanto tempo sem ter nascido

e agora trago essa creche na cabeça.

sem conseguir que o choro silencie,

sem poder dar às crianças uma teta.

 

fecho os olhos e penso: sou adulto,

uma pena: eu sou um adulto pleno.

muito sofrimento, quando sou triste,

é sinal de felicidade no meio do céu.

minha cabeça é a feira sem verduras

onde passaram a vassoura do poema.

 

congestionado o intestino da criação,

sacrifico com veludo úmido uma fé

pequena de sussurrar janelas-sereias

ao mistério de tudo tão quieto agora.

 

não sei nada e o engano do que vejo

é maldade no deserto da minha testa.

 

os poemas me saem como quadrado

ou como retângulo ou como o túnel

que liga a loucura até a primeira paz

e os berços em chamas à sede escura.

 

conforto os joelhos no prego só meu,

cuja ponta fez delírio, fez apocalipse

na crista de sal desta onda de náusea,

bonita porque vai e vem sempre outra.

 

a calma recobro com sacos de plástico

que enxugo como pulmões de pombo

e lembram dias felizes de asma e cura,

gordura órfã morta por outra hesitação.

 

nem que seja por um minuto no poema,

saber que estou do lado certo da história,

para que um poderoso, ainda que inédito,

deus surja no sentimento digno de classe.

 

não há que se forçar uma abstração lúcida

no lugar onde se esbalda a carne desperta.

 

escorrer como a síndrome do mecanismo

que é puro joguete ao lado do superfrágil

rolar de ações que dá sentido ao novo dia.