31.3.07

"a fênix decapitada"

meu avô morto, materno
me causa tanto impacto
simplesmente morrendo,
aquele que perdeu tudo
e é mais ligado do que eu
às coisas e passos da vida
e me encabula, a mim,
pelo internato pessoal
que sou neste silêncio
conservado em datas
ou cicatrizes de espera.

quem ama, vírgula,
ama o que abandona
e perde o que retém.

"a menina que nunca beijei"

éramos amigos,
túmulos distantes,
mas próximos vivos.

a mesma voz de radialista
nos afetava quando o silêncio
nos fazia ouvir besteiras.

meus amigos são melhores
num quadro discutido,
o que talvez, por sorte
queira dizer que os amo.

todas as coisas sobre
as quais sei, minto.
e todas as coisas
sobre as quais minto
sei que minto melhor.

agora eu troquei
duas mulheres
por uma idéia
baby blue banal.

se voltei a ouvir bob dylan
uma coisa deve estar errada:
estou vivo outra vez, morte!

são parâmetros da vida
na vida que me fizeram
música quando acredito
e não acreditamos todos?

é uma escolha rasteira
que vem à nossa cabeça
quando estamos pensando
nas meninas esquecidas
que nos deixaram na porta
de nós mesmos, pelos olhos.

29.3.07

"milk-shakespeare"

se nós escrevêssemos
tudo que sentíssemos
estaríamos sempre sós
e para sempre ocupados
porém não tão infelizes.

"amor e saia justa"

ama-me quem teme
por isso que te digo
quem ama não ama.

existem pessoas, sim,
existem essas pessoas
que amam e se matam,
ou que amam e sofrem.
essas eu quero conhecer
e quando conheço, pulo.

sinto lhes dizer que cito
sem dizer, assim como
o próprio fanhoso faria:
não é possível amar e ser
esperto ao mesmo tempo.

eu dedicaria este poema
a Bob Dylan se não fosse
tão vaidoso quanto ele.

"não era para ser bem isso"

para ser bem sincero, não espero de você
sim, estou ouvindo engenheiros do havaí
sim, e isso me lembrou de você, por você
(você aquela palavra significando não eu).

você aquele amigo bem mais velho, cheirando
você a pessoa que não tinha medo, chorando
você sorridente atrás das cortinas, em chamas
você que se mata por mulheres, desconhecidas
você dúvida preciosa, que não quer dizer nada
você as mulheres que lêem signos, decapitadas
você aqueles homens com as mulheres, mortos
você que não se esqueceu de mim, eu mentindo
você loucura reprimida em foices, comprimido.

não era para ser bem isso e
por isso mesmo, perfeição.

28.3.07

"não exatamente"

não é exatamente
uma saudade imensa,
é um não estar em mim
que antes recompensava
a ausência de estar em ti,
contigo estando de mãos juntas
andando juntos por todas as calçadas
como se pudesse ter sido qualquer uma.

27.3.07

"carta de um estudante de belas artes"

“só a emoção perdura”

Ezra Pound



Ezra Pound dizia
nos seus ensaios sobre poesia
que a poesia era uma ciência
assim como era a química.
ele acreditava piamente
no ritmo absoluto
de cada homem.

nas formas sólidas e fluídas do poema
– como árvore ou água despejada –
concebia a poesia como arte pura
e cada homem como seu próprio poeta
sem diferença entre amadores e profissionais.

dizia que não devíamos esperar demais
por ter nosso valor artístico reconhecido
antes de havermos descoberto algo novo.

dizia que devíamos ler os franceses,
sobretudo os gregos, os florentinos,
que devíamos ler Confúcio inteiro,
Homero inteiro, as versões latinas,
Ovídio e os poetas latinos “pessoais”
Catulo e Propércio.

ele veio do alto e nos disse, pousando:
não percam tempo com o que não presta,
vão direto até o talo do osso primordial.

não esquecer de Villon
(um esboço de Renascença, sinos medievais)
nem de Voltaire, Stendhal, Flaubert, Gautier,
Corbière – Corbière? – Rimbaud.

devíamos ocupar nossa juventude com isso,
nada além de três ou quatro anos, os únicos.

o pupilo Eliot, cabelo dividido ao meio, espinhas,
disse que “nenhum verso é livre para quem queira
fazer um bom trabalho”. Ez aplaudiu emocionado.
Pound esperava do futuro uma poesia mais austera,
versos diretos, geométricos, sem deslizes emocionais.

ah, que se foda Pound!
eis a sua poesia austera...

"Salutation" (Ezra Pound)

O generation of the thoroughly smug
and thoroughly uncomfortable,
I have seen fishermen picnicking in the sun,
I have seen them with untidy families,
I have seen their smiles full of teeth
and heard ungainly laughter.
And I am happier than you are,
And they were happier than I am;
And the fish swim in the lake
and do not even own clothing.
*** tradução de Mario Faustino ***

"Saudação"

Oh geração dos afetados consumados

e consumadamente deslocados,
Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol,
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
E eles eram mais felizes do que eu;
E os peixes nadam no lago
e não possuem nem o que vestir.

25.3.07

"vampirismo"

um coração ferido pode escrever melhor,
você agora pensa – sem ela você pensa.
e de repente ali está você no seu quarto
pensando no príncipe Tepes da Romênia
fumando um cigarro quando você não fuma
ouvindo um quarteto de cordas de Bela Bartok
imergindo lentamente em auto-comiseração
apenas para depois escrever sobre isso.

"Arte de amar" (Manuel Bandeira)

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

"balé"

foi por medo, minhas flores,
aconteceu enquanto dormíamos.
não fizemos por mal, amores,
desviamos da luz e vimos
por trás dos escombros alados
o que nos era proibido ver.

foi de besta, minhas flores,
que não vi vocês chorando
enquanto a noite enlouquecia.
desabaram minhas quatro estações,
me lambuzei com a sua tinta negra,
mas era muito tarde – e tão cedo.

foi por que, minhas flores?
que um dia as trouxe da lama
e aqueci seus sonhos ainda úmidos
debaixo do braço com a derrota,
agora que a noite imensa é morta,
quando me lembro da sua dança
tão mágica! – flores sem perna.

"Amor é bicho instruído"

Amor é bicho instruído
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Carlos Drummond de Andrade

"soco nos gales"

não há o que falar após Dylan Thomas,
disse sem saber o tal Lorde Byron,
quando a luz ultrapassou a persiana
e mostrou um sujeito genial sem ânimo,
e você pensaria não com muito ânimo:
“talvez seja mesmo assim, sem ânimo”.
o que significa frases: excluídas, somadas.
aquilo que beira a histeria perfeita dinâmica
do meu instrumento com dilanisses mudas
noturnas irrevogáveis abaixo do quinto uísque
a você que é velho e mente que foram dezoito.

24.3.07

"origem"

havia algo sobre Porto Alegre
era um lugar muitíssimo triste
que por isso parecia próximo
eu andava pelas ruas e percebia
que aquela era uma cidade cúmplice
e eu era uma passagem enxertada
da minha terra, tão triste quanto eu
e que por isso entendia meus erros
e me lembro que suas ruas se abriam
tão irreversíveis quanto Quintana
e me lembro que eu tinha pressa
não me agradava o lugar de onde vinha
não me agradava o lugar para onde ia
mas eu sabia chorar e plagiar Brecht
perto do Menino Deus, eu refazia o útero
às vezes D. Bowie me dizia ao pé do ouvido:
you're too old to lose it,
but too young to chose it
e isso, em Porto Alegre, fazia todo sentido.

"inspiração"

existem artistas que fazem boas obras,
obras edificantes, obras positivas,
ou então fazem obras negativas,
mas sempre moldadas por estruturas,
sempre limitadas pela compreensão.

outros, bem incomuns, nos fazem pensar
em nossos próprios tabus e preconceitos
sem mostrar nada para que isso aconteça.

como Rosselini e o filho que mata o pai
para poder salvar o próprio pai da fome,
ou o professor alemão que socorre os órfãos
– seu ex-alunos com doces, beijos e colo –
enquanto pensamos que ele é um pedófilo.

ou como Buñuel e seus retratos fiéis
aos nossos sonhos sabendo que todos
os sonhos subvertem a moral celofane.
Buñuel com seus padres fumantes
apostando escapulários no baralho
com suas menininhas desaparecidas
que sempre estiveram lá.

e pensando nisso
decido subverter um pouco a moral
e a convido para um banho conjugal.

e ainda pensando
e com a bexiga perto de estourar,
pergunto a ela se ela se importaria
se eu urinasse no ralo.

pelo que
ela sorri.

23.3.07

"tim"

tudo
vem
bem,
quer
dizer,
tudo
vem.

"as mulheres do meu trabalho"

as mulheres do meu trabalho
falam de amores perdidos,
filhos, maridos, pseudo-namorados
e de encontros inesperados impossíveis
para impressionar a concepção
que elas tem umas das outras.

sempre que pedem minha opinião
normalmente quando estou desligado
(quando sempre estou desligado)
perguntam mais ou menos assim:
“e você, pensa o que sobre isso?”
então eu digo alguma coisa “radical”
alguma coisa pouco desenvolvida
uma frase, “gosto sim”, um murmúrio.

“mas ele não conta, ele é aquariano”,
uma delas diz, e voltam a falar entre si.

com o tempo percebo e entendo a tragédia
de ser mais uma “mulher do meu trabalho”.
com o tempo percebo que o amor para elas
é uma moeda de troca no crack da bolsa
na recessão do mercado emocional.

elas tratam do primeiro impacto, do tesão
como algo que se pode esperar que se pense.
elas vivem a vida como quem pede desculpas
por esperar que a vida simplesmente aconteça.
e por isso deveriam pedir desculpas, afinal?

quem pede desculpas somos nós.

19.3.07

"clichê"

dizer que ainda te amo, oh dúvida!
e que lá fora os pássaros sibilam
e os casais passeiam de mãos dadas
e as crianças tagarelam, assustadas
e os adultos assustados, em revolta
ordenam que elas se calem e obedeçam.

ex-vedetes colhem notas do violoncelo
e as novelas anunciam os casamentos
e as que amam se masturbam aos prantos
e os que negam não fazem mais subir
mas ainda falam em rodas sobre sexo.
e políticos se escondem e nos culpam
pelo trabalho que não souberam fazer
e eu mesmo também me culpo, e a eles
mas, escondido, continuo confiante.

dizer que os parques têm seu ritmo
e que, sem dúvida, as saias nas ruas
giram em cores de sorrisos fratricidas
e as meninas tomam sorvete e alienam
o que pensam os meninos nos banheiros.
dizer que as frutas mortas de Cézanne
ou a camisa de força de Antonin Artaud
ou os touros e odres de Papa Hemingway
ainda povoam à noite meus pensamentos.

ou até mesmo dizer: “vamos juntos!”
vamos juntos a passeio, sem medo do dia
em que as provas da vida nos marcarem
com o destino para sermos o que fomos.

dizer “destino, amor, pássaros, sonhos”
ou dizer “quero sombra e água fresca”
quero um futuro de flores explodidas
ou quero uma vaga no céu de Pietá
ou uma corda do violão de Pablo Picasso
ou mesmo nuvens-avenidas de Pablo Neruda
e quem sabe aquela mão que não me embalou
quem sabe aquela mãe que se foi e continua
a me levar calmamente para longe da cama
e que anula minha dormência com sua paz.

tudo isso é mesmo um verdadeiro clichê.
a verdade não passa de um clichê negado
para que possamos, sujos, recolher os cacos
dos nossos melhores momentos, esquecidos.
uma pena que para terminar com este relato
eu tenha que, tão perto do fim, morrer
para – somente assim – permanecer vivo.

18.3.07

"2 deaths" (Charles Bukowski)

you told me many years ago
(long before Stravinsky died
today)
that you wanted to learn
everything
about engines and buildings
and war and women
and cities
and the history of
Man
and I told you
it's tiresome
don't bother
what counts is not what we
know
but what we don't
know.

you wanted so desperately to prove that you could
know what was not already
known.

and when I saw you in your
casket I had no idea that
Stravinsky would also die
today
and that I would sit here
and write about both of you
tonight.


*** tradução livre ***


"2 mortes"

você me disse muitos anos atrás
(bem antes de Stravinsky morrer
hoje)
que você queria aprender
tudo
sobre motores e monumentos
e guerras e mulheres
e cidades
e sobre a história do
Homem
e eu disse para você
é muito desgastante
não se incomode
o que conta não é o que
sabemos
mas sim o que nós não
sabemos.

você queria tão desesperadamente provar que podia
saber o que ainda não era
sabido.

e quando eu vi você no seu
caixão eu não tinha idéia
de que Stravinsky também
morreria hoje
e que eu me sentaria aqui
e escreveria sobre vocês dois
nesta noite.

17.3.07

"seiva bruta"

não sei escrever
e isso agora
não me ressente
muito;
não neste minuto.

não me importa o agora,
como se eu de fato fosse
ilusoriamente não saber
(como não sei de nada)
o que seria essa doença
de escrever o que dizer
só para aplacar o fígado
da psicologia-cavanhaque,
não mais usada para convencer
enfim o fato de que não se pode
perceber mais coisas sob pretexto
de que, mesmo cegos, ainda erramos,
o que parece ingênuo e torna falha
injustamente a melhor vergonha
para não se fazer ou viver em pânico.

nada melhor do que dormir com pressa,
o que se torna impossível quando se pensa
que se é a própria morte na crise da foice.

muito melhor ter sido ressuscitado
por algo que foi feito além da palavra,
deus calmo – nós – cheios de vaidade,
como quando deus inventou o diabo.

a pessoa descobre que é fraca
não quando diz “sou fraca”,
mas sim quando um amigo
a olha com atenção redobrada.

16.3.07

"estiagem"

sempre náufragos à procura
do nunca dantes navegado,
ficam os corpos a estibordo
e as alturas os convergem
em rotas de colisão e paz.

o amor é o insulto à saudade
no verniz pagão das preces,
no cós rasgado do estribilho,
na distância que separa dois
da entrega desmedida imposta.

é o silêncio de quem provoca
o silêncio naquele que precisa
dizer algo a quem não escuta.
e, acima de tudo, é a vontade
de jurar por tudo e depois ir.

14.3.07

"guilhotina"

os tempos novos, bem mais antigos
que Danton decapitado em praça pública,
ou que o sol sem pescoço de Apollinaire.
e não se sabe muito mais o que se nega,
mas se nega como nos soubéssemos afeitos.

estou na fila dos que abençoam asfaltos,
sem nenhum retorno de companhia ou lenço.
com desejos cálidos, um a um, nos movemos,
munidos de compaixão, mas sem esperanças,
pois já foi dito que se deve amar e calar.

fomos tratados pelo ranço da história
como a esperança dos tempos perdidos.
pagamos com tempos novos, bem mais antigos,
mais próximos da mesma velha navalha
que decepa o cerne da questão eterna.

13.3.07

"A morte de Desdêmona" (Eugene Delacroix - 1858)


"Otelo"

querer o que não se pode dar.
querer tudo, demais, para sempre,
depois nunca mais.

querer nunca como se melhor não ouvir a voz.
rejeitar o que nos espelha sobre a superfície
dos olhos nas estátuas decapitadas.

almejar a pureza, forçar a pureza como se fosse virtude.
mas que vagos poros pontuam nossos corpos sonâmbulos?
que hora exata de sede é essa: de se olhar no espelho
ao final de uma noite de prevaricações?

e logo depois a náusea de ter sede nenhuma.
ter o que não se pode domar.
essa apropriação do sangue das nossas ofensas emudecidas.
a compaixão pela aceitação da própria indiferença.
o enterro da semente não plantada.

"bar"


dêem licença ao colecionador de farsas. ele se encolhe no colo mais trêmulo dentro do vagão mais úmido do trem mais atrasado para o apito de quem diz te amo ao te ver partir como um lenço que não termina no fim desta frase--------.

dêem licença ao traficante de ossos. seu tipo de calefação é trágico, desaba com qualquer lágrima fictícia.

é engraçado pensar que só te conheço por alguns ângulos inventados do teu movimento. não é somente uma sonata, é aquele arquétipo de pureza nos olhos desviados mais entregues e fúnebres.

quem foi mesmo que disse que o segredo do mestre é saber quais notas escorregar para debaixo da mesa?

envia pelo correio uma foto bem bonita e uma crítica bem ácida, da minha pior literatura.

"Fiz como quis meu anjo negro da guarda"

Vinha andando pela Marquês de Abrantes, do metropolitano até a cama, com meu radinho particular de pilha esquentando as orelhas e o céu não era grande coisa, mas sempre é melhor olhar para cima, então tateei os bolsos, num deles achei uma bússola, que tinha ganhado de presente, há tanto tempo sem um presente e agora essa bússola e todos os seus significados implícitos e, sim, eu adorava estar perdido, o norte louco e trêmulo da bússola me desorientava ainda mais, só porque era meu norte e minha bússola e minha vida, pois estar perdido era ainda a única maneira de se continuar procurando, e eu vinha pensando nisso e numa porção de outras coisas mais confusas quando no chão vi um anjo de ébano maltrapilho escorado numa mureta com um cachimbo de pipa na boca e uma bengala apoiada no hidrante da calçada – os cabelos brancos e cheios e os sulcos de sangue estancado lhe davam o aspecto de um jangadeiro que volta do mar com sua rede de arrastão vazia, e ele me olhou e eu quase tropecei sobre suas pernas porque John Coltrane, fanático por Stravinsky, tinha dado um passo grande demais muito perto da têmpora, então me agachei levemente, sorrindo com amabilidade, arranquei os fones das orelhas, com a mão espalmada na sua direção, e meus olhos procuraram os seus olhos, verdes olhos musgosos cheios d’água sem pupilas de quem já viu demais e hoje usa uma caneca com moedas como método econômico de expressão – eu estava ali como quem pede desculpas por não saber dar a mão – já que foi assim que a junção cósmica se fez valer e, automaticamente, dado que o velho anjo decaído tinha a mão de palma virada e esticada para mim, eu disse que não tinha um tostão furado – o que não era bem verdade, mas também não era indelicado, apenas não era dessa vez, e essas situações precisam ser naturais, pelo que o negro riu de uma maneira tão solta e debochada que o céu se abriu novamente – estávamos na frente de uma igreja pseudo-gótica e a luz que iluminou a risada do anjo era rala, muito distorcida, daquelas que você pode ver pouco antes de desmaiar, e eu tenho um ranço católico, porque quando era muito pequeno e fazia a catequese minha mãe morreu e daí eu não quis mais comparecer aos ensaios para a primeira comunhão, a qual iria acompanhado de uma menina muito feia e dentuça chamada Maria Romero, que tinha a mãe mais gorda que eu já conheci – talvez a impressão fosse fortalecida pelo fato de irmos sempre juntos para casa depois do colégio num BR-800 que tombava para a esquerda sempre que a mãe dela se esparramava no banco e me esmagava em seguida ao chegar bruscamente o banco para trás – eu sempre atrás, ao lado de sua filha, que me amava e tinha um mau hálito terrível – e eu mesmo era um gordinho ansioso e desatento não muito simpático e de voz estridente, sendo que abandonei a catequese no dia seguinte ao dia em que Jussara se foi e, logicamente, esse dia seguinte durou meses e anos deitado no porão de portas fechadas e persianas alquebradas, assim como minhas próprias esperanças de um dia ter aquilo que os homens inventaram para justificar um sorriso e deram o nome de felicidade, o que imediatamente destruiu o significado puro e dúbio que um sorriso verdadeiro pode ter – eu deitado olhando para o teto durante festas de família, as risadas tão gélidas e gralhadas que a partir de então, para mim, o diabo era um homem de gravata que ria o tempo todo daquela maneira inesquecível – apenas um menininho cabeludo de virilhas assadas, boné e camisa regata, sem conseguir entender o que era aquilo que produzia um gosto metálico na boca e nenhuma lágrima, por mais que doesse a espadada na têmpora e meus olhos não conseguissem mais olhar para além do chão e eu por vezes não conseguisse reunir as forças necessárias para me salvar da falta de ar ou pelo menos rogar a deus, com a mão erguida para a resposta seca do teto branco – “apenas uma bronquite crônica”, disse o médico familiar que nunca me olhou nos olhos e se dirigia a mim como “O laudo”, e eu era apenas um laudo, uma folha de papel que voava ao sabor das grandes correntes arejadas, porque sempre me faltou o ar, assim como ao mundo todo, às flores, à beleza que sussurra dos cantos mais sórdidos, escorada em prevaricações forjadas, e àquela beleza maquiada e muda que murcha por sobre os ombros satisfeitos de plácida sabedoria e poder sobre nada, dado que tudo que nada morre, e o que não nada se afoga – e quando eu disse que não voltava mais à catequese, que “para o diabo com essa maldita catequese”, minha guia espiritual, uma velha guru que um dia deve ter sido muito bela, ou muito me engano, pois era mais antiga do que o conceito de beleza, e só falava de olhos fechados na medida do anúncio divino e usava um grande pince-nez de bronze onde pendurava os ósculos de lente que eu nunca a vi usar, pois, como disse, ela apenas fechava os olhos para o mundo e se fazia entender sem dar bola à forma como era entendida, aquelas largas ombreiras me pareciam a própria cruz do nazareno, e eu me lembro que chovia muito quando me esqueceram no colégio e já era noite e eu tinha fome e medo do escuro e do barulho da chuva, porque não estava acostumado a conversar e a chuva retorquia demais – mas muito mais por desalento e solidão – e ela me levou de táxi para casa, onde ninguém me esperava a não ser meu teto branco, e eu disse: “Tia Darly, se a senhora não se incomodar, não queria voltar mais à catequese”, e ela disse: “mas por que diz isso, meu filho?”, de olhos fechados, e eu fui sincero: “porque minha mãe morreu ontem” – ela engoliu toda aquela prece e fez um sinal da cruz, de modo que nunca esqueci para que servem os sinais da cruz e cuspo um sumo marrom no chão toda vez que vejo alguém fazer um, então ela sentenciou, de olhos fechados, porque podia entender tudo, desde que não visse nada: “que deus te abençoe, meu filho, e te guarde e proteja, pois agora estás livre e sozinho na vida”, e me largou debaixo da chuva em frente a um prédio cinza na Visconde de Pirajá onde, no térreo, havia uma joalheria, e me lembro que tantas vezes por ali corri de chineladas em volta da mesa da sala e tantas vezes ri de barriga para cima e brinquei de fazer cócegas para depois dormir levemente ouvindo os sons uterinos de Jussara, sons tão íntimos e caseiros nos quais minha cabeça se recostava, que hoje não consigo ficar mais em casa sem ouvir os sons por debaixo das portas, ela que me lavava as costas e emprestava a bochecha gelada para que meus dedos descansassem em paz e me fazia ouvir Elis Regina e dizia que um dia eu leria Clarice Lispector e escreveria tão bem quanto ela porque ela me achava melhor do que o mundo todo, e foi por isso que, sentindo-se menosprezado, o mundo a levou embora e não sei por que diabos foi pensando nisso que falei ao anjo negro sobre um espectro enfumaçado de luz, e que eu já não tinha mais um tostão porque os que vivem, vivem para dar, mas eu estava tão morto quanto a prima Mary de John Coltrane, cujo espírito ainda zunia em fast-bop nos meus tímpanos – eu era um morto que andava como tantos outros, e o jangadeiro santo do cachimbo de pipa parecia tão vivo e tão convicto do seu capítulo nessa face injusta de terra, que quase me despedaçou de vergonha e beatitude, quando olhou para mim e disse:

– Não quero nada, irmão. Teu sorriso e tua atenção me bastam. Quero apenas que você tenha um bom dia e que mantenha a cabeça arejada, que assim tudo vai dar certo.

E então eu fui e tive um bom dia, porque assim quis meu anjo negro da guarda.

8.3.07

"sim, temos bananas"





os intelectuais cansados
com suas pantufas acusam
a sociedade de passividade
diante dos fatos com que
a sociedade acusa o Estado
da indiferença que o Estado
empurra para os proletários
e plenários vazios às quartas-feiras
de cinzas que, sopradas pelos governos
(que não acusam ninguém) vão parar
sobre o nervo pálido da fragilidade
que cada um carrega para casa
torcendo para que a velha desculpa
de que “fizemos a nossa parte”
faça com que o menino desdentado
que chora por ter sido queimado
pelo padrasto alcoólatra não cresça
o tanto que precisa para se tornar besta
movido pela nossa culpa e dois braços
com força para matar.

ninguém fez ontem pelo que chora hoje,
mas, mão no peito, nós cantamos o hino.
nossa rotina de insônia, nosso contrato,
é destruir aquilo que não foi concluído,
e fazer o mito do que não foi realizado.

6.3.07

"as mãos"

escuta a música de câmara.
agora, olha, vê minhas mãos.
as que te agora desabrocham,
estão desfolhadas minhas mãos.

as que tantas vezes (ah, tão poucas!)
acenaram às sombras de esquinas latentes,
para deuses irônicos, demônios inocentes,
pervertidos por nosso destempero de viver.

destempero de viver? não, são mãos calmas
estas que tu um dia disseste “tão bonitas!”
bonitas (calmas?) como a história da vida.
sim, das mortes e das mãos que se deram.
sim, no centro destas mãos corre o ritmo
do descobrimento selvagem.
nas pontas, o ácido do tédio
que ou se liquefaz ou nos corrói
os ossos expostos e frágeis, duros.
mas sempre calmos... ah, sempre tão calmos!

escuta, ouve a música de câmara.
as mãos regem a terra e colhem as lágrimas.
estão suadas, palpitantes e cheias de musgo.
elas que refletidas pareciam me dar coragem,
agora estão marcadas, o centro ainda úmido.
continuam suplicantes e calmas, acorrentadas,
continuam hesitantes, fora do tempo de deus,
ainda que sejam símbolo do tempo de deus.

acorrentadas antecipam os apitos dos trens
para longe, para muito longe – é longe?
as mãos carregam, as mãos não sabem...
o estandarte da morte é tudo que trazem
liquefeito em ódio no suor dos homens.