26.3.24

"pema sem pena"


para suzana

 

quando se é uma pessoa

de índole melancólica

apesar de extrovertida

com ciclos depressivos

em que se cogita morrer

não porque a vida é feia

mas, justamente, porque

ela é bonita e não se vê,

 

então se apanha um livro

um livro ainda mais feio

do que o sol do meio-dia

a noite em que não dormes

e de dia balbucias despejo

e não comes nem desejas

alguma saída porque sabes

que o beco sem saída és tu.

 

geralmente o livro terrível

a boia salvadora do gênio

é obra de um outro doente

que também esteve como

que depauperado da vida

e não resistiu, sim o livro,

obra do filósofo matricida

ou do poeta que se afogou

com sua namorada no lago.

 

mas dessa vez eu me sentia

mais perto do desfiladeiro

e não havia poeta, filosofia

não havia onde me apoiar

e pela primeira vez na vida

li um livro da pema chödrön

que dizia aqui a desesperança

é bem-vinda, deves abraçá-la

já que tudo em volta se desfaz.

findo livro, comecei outra vez.

 

4.3.24

"para bataille"

 

li num livro outro dia,

pois ninguém poderia

me contar algo assim,

que o artista deve

começar sua obra

como um assassino

afia a lâmina da faca

para matar alguém.

e que, ao fazer arte,

o mundo se tornaria

seu principal inimigo.

 

isso me fez pensar

que é função da arte

esfaquear o mundo

e da culpa pelo crime

fazer nascer o detalhe

que autoriza a viver.

 

pendurar o mundo

num poste e dizer:

aqui jaz este mundo.

depois sentir medo

e começar de novo.

importante o medo,

ou seria publicidade

e não a grande arte.

 

fecho os olhos, vejo

diminutas silhuetas,

criaturas apavoradas

com facas nos bolsos

na fila do prostíbulo,

ou da boca de drogas

ou à procura de deus

por trabalho e prazer.

 

ouço do alto do poste

uma risada grotesca

da mais pura paixão

do que excede à arte.

 

e penso compassivo

nas pessoas que suam

porque lhes tremem

as mãos que seguram

armas que poderiam

por via dessa degola

expulsar do mundo

as pessoas tranquilas,

alinhadas na certeza

da amizade pela vítima,

que nunca transpiram

e sabem o que fazer.

 

no crime um segredo

se fantasia de santo.

pois apenas o santo

é o algoz e a vítima

dessa grande ilusão:

um jogo de crianças,

à procura de seus cus

nas páginas do livro.

5.2.24

"poema essencialmente noturno para torquato neto"

 

as conquistas são os pregos

num caixão pouco aplaudido.

desse modo me veio a ideia

do poema que eu teria escrito

em homenagem a meu velho,

que é tipo um torquato vivo.

 

teria sido um poema rimado

daqueles que só as crianças

e os poetas antenas-da-raça

podem escrever sem mágoa,

pois sem sofrer é impossível.

 

agora o poema largou do pai,

foi dar a mão ao morto-vivo.

as rimas se tornam a mancha

com que fazemos pobre ceia.

nunca chegaram os dias azuis

na veia aberta do verso antigo.

corre o tempo, até o parapeito

se cansou de por pena escutar.

os punhos da rede se demoram

na salvação do poema e do dia.

 

somos aqui a sobra da tua ceia,

com sorrisos de duração flácida

e ansiedades de púrpura asfixia.

 

não há sentido em liberar o gás,

as pernas já caminham sozinhas,

os canos há muito apodreceram.

 

a mim cabe estar vivo e inteiro,

de não poder voltar, insatisfeito,

eu também, ao eu-menino puro.

deitar a palavra, sem dar o pulo.

  

17.12.23

"monjolo"


para carla, diogo & laura


tu, escravo de madeira,

ferrolho de lobotomia,

moedor contrabandista:

trabalhas, feio, no breu,

jesus da classe operária.

 

te encontro neste livro

que o diogo aconselhou

e carla com fé escreveu.

teu nome parece banda

punk latina ou japonesa,

roque progressivo inglês

ou nome de sorvete bom.

mas o critério indochino

que move os teus murros

revela a violência choca

com que damos bom dia.

 

mais rápido que um pilão,

agiota pacífico do coração,

carregas até o fim poemas

menores que o teu esforço.

como este que se esconde

por trás da casa-fantasma

onde vivem crianças órfãs

e os livros que desejamos.

 

monjolo que une o desejo

de triturar e também criar

outra vida dentro da boca.

vida que favoreça a pausa

forçada de quem despenca.

15.12.23

"uma outra volta pela lagoa"


com um gosto ruim no céu da boca

de ferro envelhecido nas entranhas

passo correndo e me lembro: hoje

é o aniversário de clarice lispector.

saber disso, penso em seguida, não

ajuda em nada, mas sigo em frente.

 

uma garça, entre garças, mastiga

o pescoço de um pássaro silvestre.

as outras garças, como gângsteres,

aproveitam o sol a pino e se calam;

até os animais conspiram por aqui.

penso que talvez a garça não passe

de um burguês que fugiu de um spa.

 

jovens casais fora de forma e bonitos

aplaudem com artificial entusiasmo

uma pessoa pobre que morre de calor

dentro de uma fantasia de rata gigante.

os bebês sentem o tédio do banqueiro

e bocejam como jogadores de pôquer.

 

de mãos dadas, em roda, roupa branca,

pessoas felizes agradecem pelo sentido

inafiançável das vidas em comunidade.

 

homens jovens estupefatos, com rugas,

apresentam, apesar de tudo, descamada

a pele que não mascara o crime discreto,

mulheres atraentes, cabelos presos, lisos,

no topo da cabeça, pescoços de escultura,

marcham rumo à glória com nariz de faca.

 

eu mesmo ali, nada bem, correndo de quê?

 

cães mais sagazes e alegres do que as cinco

gerações de humanos do tipo mais ordinário.

 

juliana krapp – quem diria – sempre elegante,

fora do seu poema-hit, dentro do meu poema,

faz jogging, por mais que ela não possa saber

que passei por ela e depois bebi água de coco

e pensei: uma poeta-atleta é uma ideia de paz,

um ato de fé, boca sem dente diante dos ossos.

8.11.23

"o que é alegria"



alegria é o joão gilberto

sem saber dirigir dirigindo

um carro atolado na lama

lotado com novos baianos:

o amor, a marha engatada.

 

alegria são as coxas de maradona,

os dentes de martha argerich,

o sorriso complicado

de antônio abujamra,

as mãos gregas e longas

de celso martinez corrêa,

dedos dízimas periódicas

no gesto de pixinguinha,

nas veias de conceição tavares

as sobrancelhas de darcy ribeiro,

áfrica, ou o suor compartilhado

por corpos fáceis de carnaval.

 

alegria é chorar ouvindo

música pensando só deus

poderia ter criado isso:

um vento que faz som

e expressa diretamente

à carne, corpo cansado

nas mãos dos bonecos

de deus – isso é alegria:

ser um boneco de deus

sem pagar nada por isso.

 

alegria são velhas e velhos

poetas que quebram o nariz

do tempo e nos perguntam:

vocês ainda sentem prazer?

 

alegria são os olhos do cão,

a yoga específica dos gatos,

bichos com nariz amassado,

velhos se beijando na boca,

jovens espertos em silêncio.

 

alegria são amigos e amigas

que se chamam por apelidos

roubados de livros malditos,

personagens que comunicam

com o movimento do olhos.

alegria é quem vem de fora,

decodifica a nobre sintonia

e oferece algo sem receitar.

 

telefones que são escritos

na poeira de janelas sujas

nos veículos da juventude

quando temos quinze anos

e o amor é a espinha eterna

no centro de uma aberração

que é nosso maior esquema.

 

olhos incendiados pelo sol

ou uma chuva que se perca.

6.11.23

"escavação de juca"

para jussara beatriz, minha mãe

 

tenho esmolado informações há anos,

mas não este adulto e violado humano

e sim uma criança que, sem saber nada,

tornou-se adulta muito antes da hora,

ao mesmo tempo conservando choro,

indecisão e raiva juvenis, não as armas

que ajudam na busca o adulto aleijado.

 

criança de história pessoal inventada,

pus teu corpo nulo a viajar continentes,

guardei teus pés difíceis e tua loucura.

tua mãe louca, teu pai louco, teu irmão

prestes a se deixar levar por alienígenas

te levaram a querer estudar psicologia,

mas você nunca passou no psicotécnico.

 

na sociologia acabou não sendo feliz,

ajeitava os cálculos de fome e amor

à uma pátria esfarelada feito bolacha

velha de tão velho que era o tempo.

hoje penso que talvez você soubesse,

mas eu ainda pensava na eternidade

que traz história na carne, no sangue,

que explode em defeitos e consolos,

faz da linha humana promessa frágil.

 

escrevo, mãe, como podes perceber,

imitando os cacoetes de drummond,

pois é a coisa que mais gosto agora,

já que isso é para saber algum rastro

do que se amou ou que é impossível

amar e não se pode esquecer nunca,

por este não saber de nada contínuo

que deforma a natureza dócil da reta

numa curva de mil perigos e bombas.

 

mas é no meu amor por renato russo,

por cazuza e todos os anjos da morte,

pela mitologia da amizade em milton,

seus comparsas de alucinações astrais,

que me ligo a ti por loucura umbilical.

certo ódio contra nosso aniquilamento

uniu para sempre em sutis hematomas,

a sorte ruim de duas crianças violadas.

 

nos cruzaremos, eu sei, ainda com raiva,

no lugar onde todos são crianças recentes.

enquanto isso, quero trazer um boa-nova:

o pai ainda te ama muito, acima de tudo,

mais do que a mim, o que me deu alegria.

ele sonha contigo há trinta e quatro anos.

 

hoje sou bem mais velho do que quando

vocês dois tiveram a obrigação de sumir

do embate físico pelo que nunca terá sido

tempo perdido, sexo verbal, blues piedoso

e que, sem ser algo extraordinário, avança

mais forte do que aquilo que permaneceu.

 

sou, como adulto quase velho, mais igual

ao meu pai do que a ti, a não ser quando

me dizem que sou bonito, apesar de louco,

ou mesmo, nos casos raros, que sou bom.

estou certo de que, se sou bom, é porque

tu foste embora muito cedo, do contrário,

eu teria te oferecido um trabalho imenso.

é bom não ter que me desculpar por isso.

3.11.23

"o silêncio dos poetas"


finalmente estão em silêncio, alguns.

outros ainda rosnam, já que tragédias

são como prêmios de conduta poética

quando o verso já não mais prevalece

porque a realidade é esse prato cheio

e os cadáveres certos são o cardápio.

 

me interessam mais os que não sabem

o que dizer, o que pensar, o que fazer

– os que não sabem nem o que sentir.

nunca houve paz entre seres humanos,

e a paz entre os poetas é a indiferença

porque não tivemos determinada sorte

da qual abusou aquela ou aquele mau

poeta, que é um cidadão de carteirinha.

 

porque poetas são talvez como cavalos

– os cavalos sem dúvida mais bonitos –

correndo atrás de coisas que são vistas

na limitação de um cabresto de sonhos

que impede a visão da tristeza coletiva

e dá méritos a peitos estufados de raiva

na corrosão do que teria sido ao menos

uma firme irmandade através da dúvida

ou mesmo através da empatia duvidosa.

 

me incomodam poetas que têm certeza,

porque retificam o propósito da poesia,

que é curva infinita da qual se acumula

a crosta de derrota que, como os cavalos,

leva a beleza adiante em meio aos gritos,

apesar de um cabresto que define a falsa

convicção de que os cadáveres são a arte

que nos falta e gritá-los seja suave trilha,

caminho que nos traga alguma redenção

e nos afaste do ódio que temos por todos.

 

se pelo menos nos admitíssemos odiosos

ou odiáveis, mas sem o dedo que aponta,

haveria tranquilidade para sentar e chorar.

mas amamos a nós mesmos em demasia

para compensar outro amor exterminado

na ideia equivocada do amor e do cavalo.

 

  

30.10.23

"elegia tardia para maria lúcia alvim"


ontem compareci a um simpósio de Letras,

com as mesmas maiúsculas que te afastaram

do mundo de fora para dentro da tua fantasia,

a mesma que nos alimenta e produz a graxa

de um mundo que mistifica talentos pálidos,

tua cama cheirando como um avô siciliano,

penso enquanto uma professora bem bonita

fala do que você já foi e pensou e escreveu,

como se você fosse o mistério que de fato é.

a professora tem pés bonitos e usa sandálias

de dedo, as unhas como as de um velho boi,

um pé levemente mais bonito do que o outro,

percepção que me deixa obcecado e tranquilo.

a professora faz algo belo para além dos pés:

compara tua escrita a certo tipo de passarinho

que flutua sempre reunido em nuvem de caos,

eles se debatem violentamente juntos, nuvem

de crime em alta tensão, mocidade em pânico,

mas a visão de toda essa violência produz paz.

mas não seria minha a paz, pois era minha vez.

ao contrário dos demais eu não trazia um paper

com palavras escritas que eu poderia apenas ler,

trazia tão somente tua foto dentro de um quadro,

convite à morte emoldurada pelas boas maneiras,

nervoso eu disse algo como na foto ela se parece

com certa atriz expressionista de origem alemã,

se fosse possível para jeanne moreau ser alemã.

no fim das contas uma discreta dor vergonhosa

me levou ao assunto da vergonha que sentimos

no fundo de toda homenagem a poetas incríveis

e que, apesar de louváveis, nunca foram felizes.

era medo de cair em devaneio, fugir do assunto,

por ignorância de contar o tempo como acúmulo

de uma constatação pesarosa e também infalível

de que também eu seguia a trilha ruim que passa

pela extinção da vida enquanto ainda há o corpo,

pela dissecação do verso esmiuçando a cura final.

lembrei da selvagem nuvem de pássaros e derreti,

porque seria frio falar dessa brutalidade soberana

que da fricção da matéria com o sentido inaugura

a beleza mundana, a mais abstrata forma de vida.

fui desculpado pelos colegas de mesa, que deram

aos teus versos a devida altura de jogo indefinido.

dissecamos, cada um, tua massa de matéria cinza

e percebi que alguém na plateia estava aos prantos

e isso também me fez chorar pensando então é aí,

onde não se sustenta, que está, vácuo desafogado,

vida: cérebro espatifado contra o muro da chance.

no final apareceu humberto, o sobrinho, que bebe

como um dia eu também bebi – como as crianças

– e me mostrou algumas fotos tuas de juventude,

então me perguntei: será se bebia? afinal, minas.

tu na foto de calça jeans com os cabelos cheios,

teu sonho uma colagem das revistas de cinema,

teu pasto uma folhagem na garganta da esfinge,

restos de uma bússola na corrosão de um sonho.

28.10.23

"o novo gênio das letras"


com furiosos engajamentos matinais

por pautas confusas, sempre convicto,

acorda tarde e sem paz o novo ídolo.

 

sua violência são telas que atropelam

o silêncio dos menores, a quem escapa

um fio de meada, por isso não esperam

a necessária anunciação do novo ídolo.

 

e dentro do novo ídolo, um novo gênio,

porque é preciso rápido um novo gênio!

é preciso ser um homem – infelizmente.

pois gênios mulheres, todos já sabemos,

não servem para encaminhar toda gente

e a poesia de gênio é um caminho reto

até o centro criativo do que chamamos

última etapa de uma longa decadência.

 

há várias exigências, pr’além do gênero,

na concepção deste hoje tão necessário,

imprescindível novo gênio das palavras,

coisas que, de forma aparente, ao leigo,

nada tem que ver com a criação literária:

 

ter nos pés sapatos sempre desamarrados,

com solas sempre gastas, ainda que novos,

porque este novo gênio pesa mil toneladas

quando pisa com nova fé a terra devastada.

e, quando pisa, sacode na árvore da poesia

os frutos maduros, alguns podres, aqueles

quase prontos para se tornarem uma nova

árvore ou linda dor de cabeça para o povo.

 

mas na manhã do novo mundo, da nova era,

o novo gênio acordará e limpará as remelas

e anotará, ainda sonado, num papel simples:

“buscar com fé um mamão que seja barato”,

e a questão do mamão será a coisa mais cara.

 

precisamos tanto do novo gênio das palavras,

que o fato, de todo realista, da ideia do gênio

como algo que as épocas olham de binóculos

pelas janelas de um trem de carga em chamas

é uma piada lírica no fim de um longo poema

coberto de esperança por este que virá quando

finalmente jogaremos no lixo da história o zelo

com que olhamos pelos binóculos o nosso lixo.

 

e todas as épocas, de mãos dadas, farão a dança

no sabá das mais estranhas e indefesas criaturas,

às quais o novo gênio das palavras trará a chama,

o trem, a janela e o peso de um milhão de quilos,

a velocidade da qual não escapa época nenhuma,

para tocar fogo na palha fina do mais puro talento.

 

e nós lamberemos o talento como a pedra fictícia

no muro diante do qual o novo gênio das letras,

como a madrasta que cuida de órfãos, se ajoelha

e dá à luz a nova era com psicanálise justificada:

sonhos alienígenas costurados por livros mudos.