29.1.21

"dia a dia na pandemia"


à noite leio o livro mais grosso de kafka.

penso que a melhor literatura do mundo

pode ser aquela que causa mais vergonha.

sonho com ratos que invadem o colégio,

mas os amigos todos agem como se nada

tivesse acontecido enquanto, assustado,

digo o rato, olha o rato, ali, mais um rato.

 

pela manhã evoco a paz pelos intestinos,

depois invento por uma hora, em silêncio,

que sou uma pessoa que quase nunca sou.

preparo no gelo as frutas, calculo apanhar

minha bicicleta, enfrentar o calor e o caos.

 

tenho dificuldades para escolher a música

que gostaria de ouvir enquanto pedalasse,

com ansiedade inerente ao fato de que sou

incapaz de enfrentar a rua sem ouvir música,

enquanto me forço pela parte mais íngreme

no trajeto do lugar onde vivo até o  trabalho,

um pouco antes daquele túnel muito velho,

na tentativa de imaginar, nesse momento,

que sou agora um piloto de alto rendimento,

que calcula, na saída do túnel, a abertura

que deve fazer, no arco em que se encontra

a linha única do super desempenho ciclístico,

e quando, perfeito é o arco, poderia esperar

o vento forte no rosto sob os quarenta graus

da cidade linda de tão vazia e desprezível,

cemitério onde os restos de carmen miranda

fervem na poeira como sopa de pedra infinita

por dentro da nossa cômica desolação comum,

esperando saber para onde vai este que nunca

sou eu mesmo entre os personagens inventados.

 

de volta do trabalho, separo os potes do amanhã

e sinto o apodrecer do mamão que, no outro dia,

será cortado, numa felicidade trágica, mas amiga.

e lembrarei, um por um, os mais amados nomes

que a distância mastiga na face do esquecimento.


8.1.21

“rolar da pedra que vem das águas”


para charly garcia e luis alberto spinetta


ouvir roque argentino psicodélico

e também aquele folk de chimarrão

e sentar por uma hora ou meia hora

esperando um raio, ajuda, sossego,

e comer algo rápido sem esperança

e depois arrotar como um burguês

o salame que, algumas vezes, tirou

sem pagar do supermercado onde

talvez se esteja espancado à morte

no estacionamento por trogloditas,

ainda assim passar vivo – até aqui

imaginar que se é um alienígena

e se sentir ao mesmo tempo feliz

e muito triste por saber que não há

muitas pessoas, agora, escutando

roque hermano, folk de chimarrão,

e também sozinho por ser de outra

espécie de animal cujo paradeiro e

origem não podem ser conhecidos,

então uma força estranha acomete

até aqui para apenas se deixar estar

em bulbo de flor, lagarta no casulo,

um corpo na cruz, qualquer cláusula,

mas sem cláusula saber salame ham-

burguês, seus intestinos burgueses,

mesmo sem muito dinheiro e terror,

ainda assim uma chance em milhão,

pequena vocação, um tanto heroica,

no rolar da pedra que vem das águas

do rio da prata, arredor de um sonho

esquisito como todos aqueles bichos

magros muito altos, bichos curvados,

que tratam com papoulas e pimentas

a cinzenta amnésia latino-americana.

 

 

 

“o incontrolável coração de leonardo fróes”


estou cansado e forte e penso no meu xará

com alma confuciana e canelas esdrúxulas,

um samurai, inclusive, com olhos puxados

e um milhão de anos na carcaça de um pã

que nunca, em tempo algum, pude encontrar,

enquanto anos a fio sonhei com a ideia

de ter qualquer espécie de sábio guru

sem breguice e que pudesse me dizer:

leonardo faça isso, leonardo vá por aqui,

e que sobe em árvores crespas e explica

cada órgão de cada filho verde de deus

como, enfim, o sonho de uma criança

também de olhos puxados e aquariano,

também uma tentativa, com mais medo,

de entender maneira de frear o que é ruim

e amar os mais novos conforme a tartaruga

pode amar suas centenas de ovos, um a um,

e enfrentar a maior travessia da sua vida

rumo a destino incerto, sinuoso desfecho,

um animal antigo que ama o suficiente

para fazer o que não é possível e por isso

completa a jornada como um pai, um filho,

como um ciclo vivo de carne e muito osso,

mandala refletida em dentes e compaixão,

um que sabe que nos sonhos não se dorme,

que o mal acontece e todos podemos ver,

mas dentro do órgão de cada fruta ele vem,

inquieto, uma criança de um milhão de anos,

com quem se aprender que quase sempre

a estrondosa derrota é verde como o perdão.

6.1.21

“verão gelado de poemas bonitos”


a noite enforca os parapeitos

dentro da cidade, também no mato

alguém se move lentamente

sobre a fina dúvida de um suspiro.

 

alguém no fundo da lenda do encontro

encobre de gelo uma parada de ônibus

e as luzes emagrecem sob os holofotes.

 

é frio quando qualquer um pode

– num segundo e muito embora

permaneça a cabeça no pescoço –

desaparecer do árduo convívio.

 

mais estranho é o que diremos quando

o improvável que nos ronda acontecer:

isso é absurdo, não suporto, morrerei.

mas dias depois ancoraremos bombas

em portos repletos de fascínio em pó.

 

é sempre frio quando a noite enforca

a euforia dessa lembrança em delito

quando, contaminada, delira a sorte.

 

vejo brilhar os olhos que derrubam

as manhãs por trás de uma película

que aborta a luz de um sol anêmico.

 

somos uma gangue de medrosos

que desejam a coragem coletiva

mas entregam parágrafos de aço

nos desvãos de uma poesia curta.

 

quero rasgar o casaco em busca

do osso de uma alegria pequena

para lamber o medo e confortar

a paz sem olhos de um verso nu.

“fazendo feira na pandemia”


a paixão é um dormir sem descanso

estou na rua ao sol cheio de frutas

sempre na rua penso minha paixão

é muito grande na rua ela explode

te amo tanto na rua que a cabeça

fica grande e eu fico mais belíssimo

te amo tanto na rua que não gosto

se volto para casa e te amo menos

não é bem isso eu acho que a rua

me lembra da alma mendiga doutr’

ora o sol de cueca fazendo um beiço

o medo que sinto na rua me torna

criança e em casa eu sou um adulto

essa gente de pelo e cabeça grande

e quando chego em casa e vejo você

eu devo pensar aqui ela não combina

porque você é a infância estrangulada

que acaricia as veias do braço infinito

minha fé rarefeita nas bigornas em flor.