28.1.08

"On sitting down to read King Lear once again" (John Keats)

O golden-tongued Romance with serene lute!
Fair plumed Syren! Queen of far away!
Leave melodizing on this wintry day,
Shut up thine olden pages, and be mute:
Adieu! for once again the fierce dispute
Betwixt damnation and impassion'd clay
Must I burn through; once more humbly assay
The bitter-sweet of this Shakespearian fruit.
Chief poet! and ye clouds of Albion,
Begetters of our deep eternal theme,
When through the old oak forest I am gone,
Let me not wander in a barren dream,
But when I am consumed in the fire,
Give me new Phoenix wings to fly at my desire.

***

"Sentado, a reler o Rei Lear"

Ó romance de linguagem dourada, com sereno alaúde!
Bela Sereia emplumada, Rainha dos confins!
Deixa a melodia neste dia de inverno,
Cerra as velhas páginas, e te cala.
Adieu! Novamente, contenda feroz
Entre a maldição e o barro apaixonado
devo abrasado passar; provando humilde mais uma vez
O agridoce desta fruta Shakespeariana.
Poeta maior! E vós nuvens de Albion,
Geradoras de nosso profundo e eterno tema!
Quando eu atravessar a antiga Floresta de carvalhos,
Não me deixeis divagar num sonho estéril,
Mas, quando no fogo me consumir,
Dai-me novas asas de Fênix para que voe a meu desejo.

*tradução Alberto Marsicano e John Milton

27.1.08

"a pequena dama"

os olhos mais puros
que o índio não viu
eu resgatei, para quê?

a pérola intacta, ela
só existe em sonhos
longos, e nós dois
somos o sonho raro
de que não se lembra.

me lembro de ti, fada,
aquela que me escapa,
morte, ou vida cristalina.

24.1.08

"Sermão do Diabo" (Paulo Mendes Campos)

Bem-aventurados os aleijados porque não distinguem as proporções dos
sentimentos morais e desenham triângulos tortos na areia.

Bem-aventurados os cegos de nascença porque rangen quando rangem
nas curvas os astros do cosmos sem música.

Bem-aventuradas as mulheres feias porque trocam sinais com a Via Láctea
e são tangíveis a todas as semáforas.

Bem-aventurados os que morrem nas catástrofes ferroviárias porque a vida
foi de repente a sinistra aventura.

Bem-aventurados os desequilibrados líricos porque inventam tristes gno-
monias.

Bem-aventurados os que perdem os filhos porque, incendiados, são hábeis
em distinguir a estrela do naufrágio.

Bem-aventurados os mendigos porque pertencem às searas mitológicas.

Bem-aventurados os suicidas porque chegam de armas nas mãos ao outro
lado.

Bem-aventurados os indigentes porque resumem as misérias da poesia.

Bem-aventurados os bêbados sem remédio porque se extinguem no cre-
púsculo como o carvão.

Bem-aventurado o que alimenta um mal secreto porque pode telefonar à
hiena e convidá-la para jantar.

Bem-aventurado o indivíduo que tem o rosto deformado porque pode olhar
a morte nos olhos e interrogá-la.

Bem-aventurados enfim todos os homens, todas as mulheres, todos os
bichos, bem-aventurados o fogo e a água, bem-aventurados as pedras
e as relvas, bem-aventurados o Deus que cria o universo e o demônio
que o perdoa.

22.1.08

"Poem" (Leonard Cohen)

I heard of a man
who says words so beautifully
that if he only speaks their name
women give themselves to him.

If I am dumb beside your body
while silence blossoms like tumors on our lips
it is because I hear a man climb the stairs
and clear his throat outside our door.

*** X ***

"Poema"

Eu soube de um homem
ele diz palavras tão bonitas
que só de falar o nome delas
mulheres se entregam a ele.

Se estou mudo junto a seu corpo
enquanto silêncio floresce como tumores em nossos lábios
é porque escuto um homem subir as escadas
e limpar sua garganta do outro lado da nossa porta.

19.1.08

“casais nas ruas”

aceite meus olhos
– não se comova –
é tudo que posso
dar com carinho.

as mãos sobram,
pensam sozinhas.
os pés, coitados,
esmagam pétalas.

se te olho assim,
fixamente assim,
é pelo que me resta
de ternura e ódio.

aceite meus olhos,
esprema meu amor.
estão de passagem
eles dois, nós dois.

18.1.08

“cacau no flamengo com natércia”

foi por causa de você que parei de pensar.
foi por causa de você, dos dentes separados,
sim, a mesma e sempre você, lindas unhas,
para mulheres e homens não terem dúvida.

contigo aprendi a, sem pisar, comer cacau
de mentira no Aterro do Flamengo.

contigo aprendi a esperar a sílaba fugidia,
a engasgar com dignidade o tumor eterno.

contigo, principalmente e fundamentalmente,
aprendi a cavalgar – em todos os sentidos e riscos
– inclusive o Rei, cores na parede, sinos do luar.
tu da cara larga que me olha, e que me contenta.

a corda do que aprendemos juntos, ao mesmo tempo.
a comunicação falha ou a corda arrebentada de nós
– quem sabe um amor forte olhado com desprezo (?).

mesmo assim gotejamos
álcool, Luiz Melodia,
a primeira idéia que fica,
agora algo numerosa,
da primeira fase plena
do adeus sem fim, jazido,
do que nos faz prosseguir
sem saber mais como
(mesmo assim obrigados).

17.1.08

"domingo no zoológico"

para Juliana, a menina dos dragões dourados

domingo no zoológico,
nós vimos hipopótamos,
mas não havia pelicanos.

uma pena não haver pelicanos.
ela queria muito ver pelicanos.

“aonde eles foram, os pelicanos?”
– ela perguntava, muito ansiosa,
sorriso de criança, olhar as voltas,
ainda com os dentes de leite.

como eu poderia dizer à pobrezinha
que os pelicanos voaram para longe,
e que longe é muito perto, intocável,
mas muito perto do coração?

15.1.08

"a primeira dor intacta"

tudo começa ocasionalmente
como dor escura, como parto,
feito aparição sem presságio,
tiro surdo, igreja gótica, lupa.

no estômago inicia-se o susto,
a planta carnívora das idéias.
a garganta prateada, moedas
douradas estourando divisas,
entranhas comendo-se vivas,
mas tudo puro, bruto, biônico.

a passagem para o concreto
porém é queda vertiginosa.
o irreal se dissipa à revelia,
trapaças tramadas às cegas -
ah, pelo benefício da dúvida!
doce pecado de não se pecar.

chega-se então ao fim do poema,
e tudo o que ele for é tudo e nada.
sei apenas que direi: “sei apenas”
e sujarei frases, com a dor intacta.

13.1.08

"os receptores"

sempre abertos, escancarados
como algo que resiste.
confusos, é claro, sedentos,
muitas vezes apavorados,
incertos, radicais no carinho
para com a dúvida borbulhante.
sem resposta, o corpo se fecha.
é frio, fogo!, dizemos “amém”.

não há consolo de Pietá.
não há lírios ou benzina.
não há mais genuflexório.

somos nós, elementos estáticos,
sempre abertos, corpo fechado.
elementos vazios, receptores,
à procura de deus no escuro.

“com palavras desconexas saberemos”

o tédio, a força do caule, a cor.
com palavras assim desconexas
saberemos quem sabe pressupor
o ciclo uno que liga as palavras
aos sentimentos que tentamos
explicar com atitudes suspeitas,
mas que permanecem intactos
como o vinho tinto no estômago
do suicida que, sem ter amado,
morreu por amor, e ficou vivo.

"a busca"

lá e cá, busca apenas tua busca,
esquece a chance de encontrá-la.
despercebida, barbitúrico ao sol,
não é só tua, é também do passo
que não deste em terreno baldio.
é tua e das flores que murcharam
sob a foice da tempestade acrílica.
tua busca, leve-a contigo no bolso
e não te preocupes quando tirares
as mãos do bolso e houver apenas
teus dedos gélidos – é o bastante.

4.1.08

"uma espécie de hai-kai"

sim, fato, existe a lua!
o homem vê duas luas.
por favor, mais vinho!

"Murilo Mendes"

sei que não sou “nós”,
e não somos por eras.

simples e livre, falo,
mas por mim gaguejam
sob olhares eunucos.

lendo-te a mente, pergunto:

vale a poesia que seja
explicação explícita?

2.1.08

"amizade a rigor"

o rigor de quando se pode
dizer sim ou não juntamente
– sempre e ao mesmo tempo –
recomeçar do zero a cada segundo
para no fim morrer de tanto amor
que se concentra apenas no eterno
e na passagem de cada ser pleno.

"Inevitabilidade"

O ideal seria poder gritar para nunca mais olharem para mim daquela forma. E que não lessem isso como lamentação irada. E que meus dedos parassem de se mexer à toa. E eu de fato grito. E eu do grito faço a porra. Aquilo que vai e fica no pau dependurado. Mas o grito sai mudo e ninguém escuta nada. Porque tudo que é mudo muda tudo e rega a muda morta do bem e do mal. Enterro a dúvida para sempre debaixo da vala, faço da vida a morte da fala. Então somos capazes de sorrir. Mas os sorrisos de agora vivem da morte do entusiasmo. Porque esquecemos do que realmente se trata o entusiasmo. Afinal, quem se trata é paciente e eu tenho pressa em saber que doença é essa que pode desmentir meus olhos. E a morte é só aquilo que me dizem enquanto sangram os porcos. Então duvido de mim mesmo, dos ouvidos, dos sinônimos, do dilúvio, do desprezo. E penso: e peso: e meço as conseqüências. É isso enlouquecer? A balança não responde, está enlouquecida. E continuam me olhando de cima a baixo. Uns tentam entender, se aproximam sem pressa, outros entendem bem mais do que tentam. Faço a mim mesmo de capacho e gosto do gosto da terra molhada amassada na gengiva rasgada durante alguns sonhos. Sara, sua saia sacia! E eu continuo aqui sem cria, sem credo, sendo que aqui pode ser lá, noutro lar, debaixo de outro teto, mas continua sempre sendo aqui, como se o aqui fosse o passo paralisado. E continuo sem saber de onde vem aquilo que não encontro. E uma pessoa me diz ao telefone que sou amargo demais. Que rio pouco, que sou calmo demais, rabugento demais, irritado demais, que tenho um ótimo humor, que hesito demais, falo demais, contradigo rápido demais, e de que adianta então saber? Não se decidem sobre mim. Apenas se livram com seus nomes e dedos nos olhos. Eu gosto assim. Calmamente triste é quase feliz. E o que me faz parar é a continuidade daquilo que abala as bases sólidas da dúvida eterna: a pressa pelo fim / a demora pelo começo. Não havia mais pelo que gritar. Não havia grito por que fazer. Não havia fato por grito feito. Eu mesmo tento ouvir direito, mas fico ali com meus pequenos barulhos. Minhas lufadas asmáticas. Procuro me guiar pelo que se aproxima do silêncio. Os cabelos caem a passos largos, a barriga incha a olhos vistos, os olhos murcham e se avermelham, a cabeça incha e a paz some. Mas os ponteiros não param nunca, o instante permanece em movimento, o que se chama eternidade, os carros, as pessoas, as promessas, o futuro, passam todos sem deixar rastros, mas deixam marcas substitutas. E não posso evitar que me olhem. Não posso evitar olhar. Os olhos sempre percorrem aquilo que nunca esteve lá. Algo que está sempre me abandonando: o tal maldito e devido lugar. As coisas se fecham sem ao menos se mexer. Eu me mexo sem ao menos me fechar. Duro trinta segundos a cada minuto e com isso tenho mais muitos anos pela metade. A cada minuto humano, para mim é sempre momento de baixar os panos. Eu não posso mais dizer eu não posso mais dizer eu. Queria escrever como a rosa é bonita e que isso significasse mais do que a velha falou em Paris. Queria sorrir sem precisar dar a mão. Queria saber quem foi Debussy. Mas preciso não ver para permanecer aquilo que de mim se faz você. E, vejam bem, você quer dizer vou ser, no minuto em que você – ou vou ser – fizer de mim o outro da vez. No minuto que durar apenas um minuto, soltaremos fogos e não vou querer mais baixar os braços. Riremos juntos do tempo e vou recolher meus trapos numa sacola e vai ser a primeira vez que o vento vai me ajudar a andar em vez de me encher a cara de poeira. Agendar a tristeza para o próximo dia útil. Apostar com o diabo nos cavalinhos. Beberemos cerveja, eu e o diabo no prado, e quanto ao resto, ficaremos calados. Felizes e calados como o primeiro segundo depois do amor. Daí, vou calçar os sapatos, na mão em riste vai meu dedo polegar, com Jack London em qualquer vagão, para qualquer lugar onde esteja escrito vá com exclamação. Guardarei nos olhos a mostra morta da paixão, nos bolsos o que se falou até aqui sobre a vida, do perdão e do que não pode mais ser perdoado. Melhor não falar mais nada. Lá fora pedem que eu ande mais rápido. Lá fora até as árvores têm pressa. Até os que voam sentem fome. E quanto mais fundo se mergulha, maior a sede. E quanto maior a sede, maior a mentira por um copo cheio. E mesmo os bêbados perdem o nome, mas mantém o corpo alheio. Arrasto-me pelas calçadas coçando a cabeça e olhando para o chão. Um dia saberei o que me faz coçar tanto. Essa frase é tão desnecessária quanto um ponto-vírgula. E nesse dia a coceira será ferida. A ferida será aberta. E não vai mais coçar porque vai arder. Porque o pus do silêncio será mais violento do que os cascos de uma cavalaria em chão de pedra. A preguiça, mais agitada do que mil perdizes rasgando o céu. Porque entender será sempre julgar. E julgar será sempre culpar alguém por aquilo que não se pode evitar em nós. E culpar será sempre magoar o que não se pode mais tocar. E magoar será sempre projetar. Aquilo de ti que ainda não foi embora e me habita, me escorre pelas canelas.