31.12.06

“paixão das ruas”


versão 1

ela emerge do peito à noite vestida apenas
com seus sonhos e seus cílios venenosos,
ela que é a espuma do vento enegrecido
e foge por dentro do oco das entranhas
do amor que permanece, não estando salvo.
ela me deixa acordado, com olhos de cera,
no fio entre os fatos e suas ilhas suspensas.
à meia-noite me compõe versos satânicos,
ao amanhecer do dia, ossos caramelados.
ela que é tudo que passa dentro das bolsas,
por baixo das marquises do núcleo em pó.
cordilheira espiã de nossas noites agonizantes,
por que você, que é também minha assassina
(minha amante quando seu eco ganha as ruas),
não se digna ao menos a me dar um bom dia?


versão 2

ela emerge do peito da noite vestida apenas
(amor dos becos e das almas clandestinas)
com seus sonhos e seus cílios venenosos,
(vertigem de espuma no vento enegrecido)
e ela foge por dentro do oco das entranhas
do amor que permanece, não estando vivo.
ela que me dispersa com seus olhos de cera,
no fio entre os fatos e suas ilhas flamejantes.
à meia-noite, me compõe versos satânicos,
ao amanhecer, sou todo ossos caramelados.
ela que é tudo que passa dentro das valises,
por baixo das marquises do núcleo em transe.
cordilheira espiã das madrugadas agonizantes,
por que você, que é também minha assassina
(e minha amante quando ecoa pelas ruas),
não se digna ao menos a me dar uma surra
já que não posso alimentar essa leveza fria
da sensação que causa o toque do teu instante?

29.12.06

“três vezes nada mais um você”

você
matéria sem rumo
que sendo mulher
foi minha contra
concepção anárquica,
vergonha escondida
nas olarias venosas.
você
meu fim de estação
cuja flora intacta
reluz em meus erros
como seduz meu fim
a sede entre cismas,
a marcha dos cactos.
você
primeiro pigarro,
que apaga o cigarro
ciente do método
de dizer eu te amo
como em baforadas:
você minha fumaça,
você?

27.12.06

"amarelo para van gogh"

(campo de trigo com corvos, 1890)

o que não se funde não fere
a massa de tinta nos sonhos,
a ponte levadiça dos prismas.

tua arte era teu pavor químico
de alcançar o ponto mais cego
no cerne da dor e da aceitação.

e como estas são duas padronizações
sem conexão a não ser contingente,
então a princípio a arte não existe.

demônios decalcados no grito da noite,
tua loucura foi por excesso de bondade.

o mundo teve medo da tua alma amarela,
dos comedores de batata na escuridão,
das lâminas e das lágrimas de absinto,
do teu amor derretido na pele da luz.

tua idéia de arte funciona apenas nos
cérebros ébrios, do contrário mortos.
quando um sóbrio fala em ti ele viola
a saliva sobre tuas telas engolidas.

a vida é apenas uma palheta de cores,
a justiça dos homens, pincel quebrado.
“a tristeza durará para sempre”,
disseste a Theo com corvos nos ossos.

demônios decalcados no grito de sangue,
teu corpo insepulto é a lira dos mortos.

25.12.06

"Epitaph on a Tyrant" (W. H. Auden)



Perfection, of a kind, was what he was after,
And the poetry he invented was easy to understand;
He knew human folly like the back of his hand,
And was greatly interested in armies and fleets;
When he laughed, respectable senators burst with laughter,
And when he cried the little children died in the streets.

***

(abaixo, a tradução que eu fiz, tentando manter métrica e rima nos seus devidos lugares, ou seja, onde quis Auden).


"Epitáfio de um Tirano"

Perfeição, de um tipo, por isso ele esteve aqui,
E a poesia que ele criou era fácil de se entender;
Como a palma da mão conhecia toda a estupidez,
E teve muito interesse nos exércitos e nas esquadras;
Quando ria, respeitáveis senadores explodiam de tanto rir,
E quando chorava as criancinhas morriam pelas calçadas.

“pane no presépio”

hoje à noite uivo para a lua
enquanto faz sol lá fora.
mas lá fora não é lá fora,
o sol é um cigano fugitivo
e a lua usa maquiagem demais.

lá fora é menos que lá fora,
quilômetros de paraísos fiscais
na palma da solidão armada.

por ter me perdido muito cedo
acordei um lobo sem pressa:
matilha rábica na idéia fugidia.

hoje à noite uivo para a lua
enquanto faz sol lá fora.
mas lá fora não é lá fora,
o sol é uma lâmpada acesa
e não penso nos que precisam.

24.12.06

“roots bloody roots”

gigantescas expectativas
fulminadas por tardes
e pela necessidade inorgânica
de irresponsabilidade:
eis a raiz da esquizofrenia.

“só mais um deus refugiado”

Quando criança, um médico disse: “não há o que fazer, a alma parece descolada”. Sua mãe, refugiada vermelha como toda a sua família, reforçava o coro dos ausentes, e sua infância foi praticamente movida ao som da vela dos barquinhos de papel.

Quando dos primeiros fios de barba, tinha um cabelo esquisito a que chamava de “minha doce loucura”, e justificava dizendo que “ela se espalhava por todos os seus poros, como o cabelo, e principalmente nos poros da cabeça”. Reparou que tinha lágrimas metálicas, e seu choro era metálico, de som metálico. Disseram: “você devia tocar guitarra”. “Prefiro sopro”, ele disse, “mas, de qualquer forma, não tenho dinheiro”. Disseram: “Então pega uma, toca: se gostar, fica, se não gostar, devolve”. Então pediu a um camarada periférico que fizesse o serviço. Este mesmo camarada transava acid jazz e ácido lisérgico, e lançou mais um pupilo nas artes do prazer e do amor e, portanto, nos arremedos da dor.

Quando ouviu pela primeira vez Wes Montgomery tocar, tentou cortar fora a orelha numa atitude impulsiva a qual, depois, denominou “proximidade com o divino”, em referência ao conhecido caso do pintor holandês. Com Paco de Lucia o caso foi um pouco mais grave. Vestiu-se por meses como um hebreu, passou a falar numa outra língua, segundo muitos, fruto de sua imaginação e da sua poesia, mas era uma língua metálica, era um solo metálico, uma plantação vasta de sons metálicos, de árvores metálicas, pássaros de alumínio. Passou a falar como uma guitarra. Não se movia mais, ficava encostado num canto, alimentando poeira, apoiado numa cadeira como muitos violões esquecidos, com sua bata hebréia e suas alucinações de chumbo. Um dia piscou os olhos e disse alto: “o Siroco! Está chegando o Siroco!”. Então voltou a falar, mas só falava nisso: no Siroco, que chegaria do Saara para corroer as ruínas greco-romanas e sacudir os esqueletos dos fantasmas sanguessugas de almas.

Alguns o consideravam o maior guitarrista de todos os tempos, normalmente bêbados de coração sensível. Outros lhe atiravam moedas e o que nem os pombos se dignavam. Sapatos apressados passavam como facas de verniz. Mais uma tarde amarelava como o enjôo do sol. Ele tocou, tocou a tarde toda, tocou por um milênio, tocou como um dos grandes, então parou e guardou a chave do tempo no bolso com seus trapos e sua beleza. O tempo que não admite arestas ou gaiolas, o tempo metálico. Mas o primeiro médico tinha mesmo razão: a alma descolada. E o aplauso surdo das marquises se esfarelou na tensão constrangida pela admiração cósmica da poluição atmosférica pelos seus deuses de ferro.

22.12.06

“epifania noturna antes do incêndio”

Ao virar a página 84 do livro, sentiu calor e sono, era bolor e como que um entorpecimento de anestesia. Um sentir exagerado, os lábios inchados. Como um medo mortificante de finalmente entender sem precisar ponderar. Reparou que sangrava. Que diferenças têm o sangue e a vida? Era sua vida que escorria. Era o teto do quarto, claro de idéias, idéias selvagens, indomáveis, azuis e alaranjadas, e ela precisava escolher uma delas para flertar com ela até adormecer. Apanhou o caderno onde anotava suas paixões secretas, suas táticas miseráveis de aborrecimento. Anotou no papel:

O peso dos dias tem sido, não, não há didatismo aqui, não aqui, o didatismo é apenas uma forma de reconhecer a verdade quando se precisa – para forjar um cume, ou um crime – de um vasto continente de cismas tectônicas. Falemos então o que não é verdade, o que não é nada senão uma potência fugidia e desequilibrada. Escrevamos um texto leve hoje, eu junto àqueles por quem fui designada “aos prazeres e às dores”, aqueles que me comandam quando a alma esvazia a carne, e nada mais existe para que tudo possa ser vislumbrado e silenciado pela falta de sentido e pela paz.

Olhar muito tempo para uma coisa significa fazer desaparecer a coisa, tornar-se a própria coisa. Eis a raiz da fragmentação dos corpos, da fusão dos mesmos e, em suma, do tele-transporte das almas, a que damos a denominação precária de amor; para outros, visão. Mas poucos entendem o amor que existe por baixo de todas as cascas do amor. Eu mesma entendo somente as cascas do amor. Mas conheço quem descascou o amor até se tornar o amor e, portanto, sem se reconhecer como tal, ser reconhecido por aqueles em quem se refletia. São os agentes de Clarice Lispector que esvaziam minhas gavetas de madrugada.

Mas este é um texto leve, pretensioso, fadado portanto a alguma expectativa de retorno da parte que me escreve nas vértebras, e é por pensar na minha pessoalidade que eu me confundo com os espelhos nas ruas, tropeço e largo a linha fictícia da minha realidade singular de dor e prazer, e transbordo o amor que carreguei como um camelo por desertos sorridentes de ódio. Estava tudo bem claro: “sou mais aquilo que em mim não é”, o amor esse indizível, sem cascas, irreconhecível, impessoal, o amor que é a maldição de quem ousou fazer dele moeda de troca, pobres corsários! O amor que não é feito de reconhecimento ou troca. O amor que é o amor e meio. O amor que é leve como o fim.

Vela-cortina-chamas, por traz da grama prateada, os olhos injetados de um terreno seco, em fundo vangoghiano a mão enrugada de quem um dia soube, agarrada à cauda dos sonhos com um lápis de ponta quebrada.

“cê caê caô”

cantava-se em coro, meninas in vitro:

“odeeeeeeeio você!”

viam-se os tímpanos, manifestação costeleta.

“não, não sei, não odeio, não se diz isso, não em música...”

“mas Caetano...”

“ele devia amar!”

mais de mil olhos de fogo com lanças para cima:

“odeeeeeeeio você!”

quando o assunto escorre e a pessoa é querida, somos como adolescentes antes da ferida – depois? – vamos conversar como cidadãos inaptos e sensíveis, mas conversar sobre o quê?

“oi” – olha para um, cumprimenta outro – “eu detesto (outra pessoa com olhos) gente arrogante”.

“sei...”

“você gosta?”

“de quê?”

“gente arrogante...”

“sou neutro”.

“como, neutro?”

“gente arrogante o tempo todo, você também, eu, todo mundo... eu penso: perdi a vontade”.

“então você é mais evoluído”.

você é”.

“quando o Caetano canta que odeia alguém como refrão, ele quer só esvaziar”.

“uma coisa é o Caetano esvaziar...”

“sim”.

“outra coisa sou eu te odiar... isso enche”.

“é brincadeira... metáfora moderna”.

“me preocupa o fato de eu não conseguir mais detestar a arrogância. acho que minha arrogância chegou a esse ponto”.

“odeeeeeeeio você!”

sobe som. morrem todos, não de amor.

“acasalamento”

- você quer amendoim?

(a conversa sobre algo mal-formulado sobre como convencer a frustração da existência de si própria a si próprio e ao mesmo tempo falar sobre arte com sobrancelhas e líquidos azuis).

(tomorrow is a long time, esta música, ou minha falha, é tua falta, falsa Juca).

- me disseram que você vendia maconha ali na sinuca do Boteco-taco.

- acho que ninguém conseguirá ver a chuva pesada como Dylan...

(fungindo do assunto ou o assunto fugindo?)

- você vende maconha afinal?

(dente cinza prateado para ser cor de prata, assim como eu sou prateado para ser prata da casa, se por prática estiver num círculo prateado de intenções convulsas).

- vim te conto, boldo ali do Manguinho...

- espera...

(...)

- tem vinte aqui... agora conta.

- leva e vê no banheiro.

- o tamanho?

- quanto tem.

(...)

- sei que tu precisa, mas eu não sou otário.

(como careca, mãos na cintura, pelas ancas).

- e aquela vagabunda?

“perdi meu caderno de anotações”

envelhecer é ainda
o único paradigma
o que prova
que evoluímos pouco
e a coragem é uma lenda.

21.12.06

“condenação de um solitário”

por que será que quando vêem uma pessoa sozinha, as outras pessoas, em grupo, tendem a achar que ela precisa de ajuda? os solitário normalmente são vistos como se olha para um sujeito com mau-hálito. é alguém que passa e deixa um rastro de putrefação. são confundidos freqüentemente com bichas enrustidas, maníacos depravados, loucos sem solução, casos perdidos da medicina e das teorias pré-colombianas, isso porque seu silêncio é atroz, sua distância assassina quem teme a escuridão. os solitários são as vírgulas nas frases do mundo. e para isso não há perdão. a guilhotina diária há de revogar nossos capuzes empapados de segredos.

20.12.06

"décimo quinto andar" (Ana Fonseca)

os meninos dos telhados fumando cigarros, tirando a roupa já que não gritam com a mãe, bebendo a pinga dos trabalhos que não fizeram pra faculdade, olhando a cidade só pra eles, ao contrário das meninas que nunca se entregam. uma hora e meia que ninguém se importa onde eles possam ter se escondido, algo entre o término da aula e o jantar. Um lance de escada a partir do último andar, e eles são os reis que sempre foram, sem a opressão das mesquinharias constantes. esforço tão grande de tornar medíocre essa vida de que te falo. tem que ser muito passional pra saber viver das entrelinhas.

“não deixe cair”

com a tese dos homens num saco,
pelo parapeito da janela me passam:
uma nuvem branca, incerta como eu
e a seguinte idéia: “não deixe cair”.

não quero a calma espumante
nem a divergência das cruzes.
não me contento em ser todos
para ser eu mesmo (nenhum).

prefiro não tentar ser eu mesmo
(todos) os que sofrem pelo banal,
pelo banal irrevogavelmente seu,
seu sofrimento, seu amor escuro,
suas gotas venenosas de esperança,
que passam como a nuvem branca
pela noite sangrenta, pela noite aberta,
sobre as cabeças mais atentas e (in)certas.

19.12.06

“feminista”


a novíssima poesia
é toda feminina.
feita por mulheres
e algumas meninas
que parecem tratar
questões de sexo ou credo
como questões ultrapassadas.
e destilam um purê de sensações,
usam e abusam de cigarros e ângulos
e adoram a expressão quiçá.

seus aforismos gestuais,
suas sílabas de chás das cinco
esse jeito arrastado de identificar,
de escorrer olheiras pelas veias.

a novíssima poesia
de rir de ti mas ao teu lado,
feita de gestos entrevados,
feita dos mal-entendidos da morte
e da necessidade mortal de vida.
esses raios de placenta e rímel,
essas unhas em cores fortes –
e as conversas íntimas da carne.

ah, novíssima poesia!
poesia feminina...
o couro dos tempos
será teu leito.

“Infâmia”

Quando um homem fica velho
nem sempre é quando ele tem idade
Às vezes é quando ele não tem muita
outras vezes é quando sabemos quem somos
quando dizemos aos outros: eu sei quem sou

Ou quando passamos a pensar em nós de fora

Ser velho é perder o tato com o medo
ser velho é semear angústias transgênicas
ser velho é acreditar nos contornos do espelho
É quando os olhos fazem maquiagem nas flores da face
não por elas serem velhas, infames, cheias de pêlos
mas por elas serem um sonho que descolou do precipício

O tempo sabe quem sou e porque sou e isso me envelhece
Saber quem somos serve apenas para os vermes
que – estes sim – têm certeza absoluta.

18.12.06

“Erro 404”

você quer ligar?
pode ser agora
ou eu te dou meu tel
e quando você quiser
então você me liga...
assim, meio de surpresa...
então toda vez que tocar o tel
eu vacilo um pouco, inclino a cabeça
e penso num assunto, mesmo sabendo
que não vai adiantar nada.

"o gênio na multidão"

The genius of the crowd, by Charles Bukowski

16.12.06

"enquanto o seu lobo não vem”

Parque da Redenção, Porto Alegre – mas nem tanto – tarde sem sol.

Aqui estão os punks sem gestação, os rapazes republicanos que põem fogo nas gargalhadas sem fôlego para uma vela de sétimo dia, as barbas assustadas e pedófilas, submersas em capas de vinil, as meninas tristes como trapos de maquiagem e coquetéis químicos, estampadas em lágrimas de sépia, os garotinhos tristes em dúvida sem dúvida lambuzados de batom sonhando com Ziggy Stardust e morrendo nos pêlos da grama fugidia. Aqui estão os meninos trêmulos e descolados ancorados nos seus calções de basquete e com bolas rodando nas pontas dos dedos, as meninas ainda desconfortáveis com seus peitos recentes e seus colares de espinho. Aqui estão as fezes da transição (contra-revolucionária? quem saberá dizer?). Aqui estão libélulas suicidas calçando tênis all-star de cano longo, varejeiras em saltos ornamentais para o futuro numa estalactite, os ligeiros instantes sombrios seguidos pelo vendaval violentado até levantar o chão de saibro ou terra batida sobre as caras das pessoas abatidas por saberem o que não querem saber e não saberem o que precisam saber, de modo que choram diante das luzes inconstantes e das estátuas cansadas, todas enclausuradas nas próprias equações para um mundo novo consciente e ao mesmo tempo cheio de ternuras e abismos. Aqui estão as velhas teorias vestidas com roupas velhas para parecerem novas quando deveriam estar nuas, vestidas apenas com olhos d’água.
E fico depois horas pensando se é para o meu consolo que vejo por último o busto com abas sulfúreas de Alberto Santos Dumont – logo a frente uma roda de capoeira inaugura mais uma cláusula social.

“Pântano Frágil”

Ninguém quer cuidar do garoto indefeso,
Dylan talvez diria em sua falsa entonação.
Me apaixonei pela fagulha do desprezo,
pela menina que sabia ser tinta como eu.

Toda lady e ruína para os braços do adeus,
mas não há deus suficiente que nos baste.
Levanto ainda frio do tumulo, satisfeito: frágil

enquanto a morte se levanta muito bonita ao lado,
para regar minhas entranhas, meu pátio: pântano.

15.12.06

“no ponto de ônibus”

verdade

- você diz sempre a verdade?
- de qualquer modo eu diria que sim.

gripe

- sempre que eu me gripo meu nariz fica um saco.
- engraçado, sempre que eu me gripo meu nariz continua um nariz.

frases

- há frases ridículas quando ditas aos vinte e poucos anos...
- esta, por exemplo?

14.12.06

“o fim da poesia”

Pela primeira vez na vida
vi ao vivo o Grandioso Poeta
cujos versos, dizia-se por aí,
se não foram escritos na água,
eram a própria água em linha.

Isso foi no dia dos pais
e eu estava com o meu
almoçando no Bar Lamas.

Ele me dizia qualquer coisa
sobre nos aproximarmos mais mas
meus olhos discretamente vidrados
na mesa ao lado onde o poeta estava
sentado em curva, mudo, olhando para baixo
distante enquanto ao seu lado
uma senhora hesitante metida num conjunto estampado
(colar de pérolas apertado no pescoço de pato)
tomava uma sopa com pedaços boiando dentro
(onde estavam os olhos do poeta?).

Outra mais moça também os acompanhava
– afinal, tudo se passava no dia dos pais –
vestida com roupas pretas em estilo gótico
cheia de brincos espalhados pelo rosto,
os cabelos da cor de uma falsa laranja,
falava alto no telefone celular e tinha olheiras,
em frente a um embrulho de papel celofane.

Então eu me virei, dei um abraço no meu pai
e disse: “acho que precisamos nos aproximar”.

12.12.06

“a morte quase banal de um homem quase comum”

um homem sentado na escuridão do seu pijama
enquanto a morte se atrasa mas espreita pelas cortinas
através de olhos de festim como pústulas envelhecidas.

e o homem sentado sobre o genuflexório da sua alma
espera a morte na cama tal qual catarata noturna
que se atrasa sorrindo em sangue entre os dentes
conforme a louca suicida disse às pedras portuguesas.

o homem transpira pensamentos incompletos sobre seres completos
(seres ausentes ou, ao menos, seres incompletos com astúcia)
enquanto luas e estrelas esparramam-se sobre seu calção frouxo
e de seus dedos brotam as sempre reticentes palavras de formol.

o homem então se vira, pede licença à areia dentro dos olhos
e toma um gole nauseabundo do seu suco de uva reumático,
pensando em artroses e desavenças passadas em panos de prato sujos
sobre a mesa esquecida no dia de ação de graças.

o homem toma o suco diretamente da caixa
e recorda-se de uma vagina toda raspada,
de outros tempos como se fossem outras vidas,
pensa no poeta que morreu de “insulto cerebral” e em seguida
lembra do momento mais penoso do seu último dia,
quando, além dele, duas pessoas foram hipócritas e educadas,
sorridentes ao mesmo tempo no vácuo fúnebre do elevador de porta pantográfica
como os dentes que ficaram de herança para os germes dentro do copo d’água
tais quais hienas invisíveis, indiferentes à noite que jamais terminaria aurora.

“ergométrica”

obter o original
em sua cara metade
(máscara)
através do esboço forjado
evitar a calma
(pressa)
na suspeição
do que te causa frio
(fogo)
interessar-se
pelo momento negado
(vivo)
como o amigo
que você nunca foi
(deus?)
tudo se vê
quando não se vê nada
(deus!)
e isso, apesar
de antiquário passivo
(insuperável)
é muito mais simples
se o diabo for deus
(exilado).

11.12.06

"uma mudança no tempo do coração" (Dylan Thomas)


Uma mudança no tempo do coração
Resseca-lhe a umidade; um estampido dourado
Ecoa na tumba glacial.
Uma mudança no território das veias
Transforma a noite em dia; o reflexo solar do sangue
Ilumina os vermes ainda vivos.

Uma mudança nos olhos dissimula
Os ossos da cegueira; e o ventre
Mergulha na morte como a transpiração da vida.

A escuridão no tempo dos olhos
É a metade de sua luz; o mar profundo
Irrompe numa terra sem peixes.
A semente que dos flancos engendra uma floresta
Divide ao meio o seu fruto, e a metade
Goteja devagar no vento adormecido.

O tempo da carne e dos ossos
Torna-se úmido e seco; o vivo e o morto
Se movem como dois espectros diante dos olhos.
Uma mudança no tempo do mundo
Transforma um espectro no outro; cada criança
No útero da mãe repousa em sua dupla sombra.
Uma mudança arrasta a lua para o sol,
Caem da pele as cortinas em farrapos;
E o coração renuncia aos proprios mortos.

(tradução Ivan Junqueira)

"pint for dylan"

houve uma época, um garoto de cabelos loucos,
uma avenida feita com os paralelepípedos dos sonhos
– hoje feita de feridas – em que eu me embebedava à luz do dia
e meus olhos podiam perfurar os olhos cegos da azia do mundo
e eu andava nessa época, andava encurvado pelo vento eterno
com dylan thomas debaixo do braço, seus versos injetados como ácido
no sabor de minhas imagens fratricidas, de meus cigarros imaginários
– "em meu ofício ou arte taciturna", eu queria ser como aquele poema.

era uma época, eram frases de amor, casacos de veludo, cenhos etílicos,
hoje busto adormecido no silêncio da estante, apesar de ontem, nada mais
como antes, quando os rastros eram nus e eu ainda podia olhar para o céu
e ver a fumaça opiácea do cigarro de deus se transformar em promessa.

10.12.06

"Por te falar eu te assustarei e te perderei.
Mas se eu não falar eu me perderei,
e por me perder eu te perderia".

(A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector)

8.12.06

“elegia de olhos grandes e calmos, assustados”

você que me embala pela nuca com sonhos de espuma e precipício
você que me diz não e some depois que o padre diz amém à morte
você que a lua esconde de mim através da maquiagem de puta velha
você que se mantém líquida em corpo entre minhas unhas incoerentes
você minha brotoeja em desespero de verão, você risada em frangalhos
quem é você senão tentativa infinita de voltar ao começo e achar saída?

quando entro na sala das lágrimas de festim
e não há porta atrás de mim, atrás de nós
(você minha exata inaptidão mais real)
porque os engasgos são as únicas portas
escancaradas como a arcada dos crucifixos...

7.12.06

“camara escura”

existe um filme
que eu vejo desde criança.

olhando a linha do horizonte deprimido
espero diariamente por este filme,
respondo suas preces matinais,
suas recomendações subliminares.

é o filme da morte mas não estamos com pressa.
é o filme da esquizofrenia humana mas me dêem as pílulas.
um filme sobre granizos de moral em cascatas moribundas.
o filme das religiosidades dominicais tanto quanto cadavéricas.
o filme dos pecados e das percianas empenadas
e do jato de vidro sobre a primavera esquecida.

este é o filme da extremidade e não da conjunção.
uma folha seca ritmada pela nuvem de passagem escurecida.
o filme sobre a mão estendida que geme por trás dos escombros
– à espera de abajures e dignidades constantes –
e faz uso de ícones indeterminados de ilusão e paz
para me manter de pé diante do salto azul,
a mão distante do mapa do arco-da-velha,
mas dentro desse eterno filme de época:
“o desespero de precisar ser meu próprio parâmetro”.

“Fusca Bar”

- O Tchekhov é o escritor que eu li que tem maior intimidade com a natureza.
- Que tipo de intimidade?
- Sexual.

“mea culpa”

tonto sem desafios
crina sem égua no cio
louco sem bar;
o que talvez desafie
essa eterna vontade
de amar sobretudo os olhos
que só se protegem com lágrimas
mas no fim das contas
como sempre (como séculos)
tudo que existe desaparece
diante do apetite da página.

“classe-média-alta”

o sal que vai sobre o saquê
quando já se está bêbado e distante
é como o sal que vai sobre o vidro
quando não se vêem as crianças.

“ladainha”

Uma pessoa imbecil
que se comporta como uma pessoa imbecil
não passa de uma pessoa imbecil

Agora...

Uma pessoa atenta
que se comporta como uma pessoa imbecil e atenta
para se infiltrar no mundo das pessoas imbecis
pode ser o que bem quiser.

“falação & felação”

Acontece que aquela famosa máxima do Rei Roberto Carlos – “eu tenho tanto pra lhe falar / mas com palavras não sei dizer” – não passa, infelizmente, na maioria dos casos, de uma grande cascata. Uma forma cínica de camuflar a falta de emoção com lirismo barato. Sei muito bem que alguns amigos e muitas donas de casa me julgariam mal por isso, mas não é possível ceder, depois de pensar com um pouco mais de atenção; seria vergonhoso, apesar de fácil.

Mas o que ocorre de fato é que, quase sempre, há muito pouco para se falar e menos palavras ainda para se dizer. Mas existe a vontade, esse dragão sem garganta, essa louca vontade de mergulhar na superfície, de encontrar um espelho indiferente, uma cápsula para a beleza com a qual até os livos já se aborreceram, e que portanto tornou-se anacrônica e teatral.

Talvez seja por isso que Roberto Carlos atinja em cheio os corações enregelados das melancólicas donas de casa, bonitas na sua tristeza roxa debaixo dos olhos, prateadas de perdão, debruçadas em sonhos fadados e pilhas de roupas sujas, que elas lavam desde o começo dos temos, enquanto o outro lado sente que não vale mais a pena deixar de se enganar.

3.12.06

"uma questão de gênero"

decepados,
os versos são o de menos.
o poema é aquela verdade
intransigente e mentirosa
encravada de maré escura
escrita pela própria língua
que o lê
sendo que
ela nega
perspectivamente o poema
tal qual o homem de gravata
acorda para navegar a morte
através de cifras mitológicas
e cabeças roxas de meninos,
decepadas.

30.11.06

"hai kai"

Tudo que é bom
dura pouco
Tudo que é pouco
durepox.

25.11.06

“a poesia termina quando a honestidade começa”

Sou o eterno vigiado em holofotes alcatraz
Sou o que vive sendo arrastado pelas ruas
Sou alimento para as fezes e para as putas
para a fome insaciável de lesmas sinceras
lentas e eternas por trás dos seus óculos de arte
e suas almas de vime tão recorrentes em palestras
de como se o mundo fosse o filtro de suas lentes
Sou o veneno dos seus chás efervescentes de tédio
Sou o sonho morto reencarnado em pedra brutal
Sou o abandono fictício de olhos sem nenhum élan
Sou a desfaçatez incorporada na palavra élan
o abandono acumulado nos olhos de quem implora
Sou o filosofo com preguiça de dar certo como nome de rua
ou aquelas estátuas de bronze já gastas na região da testa
Aquele que na sombra assassina elegias tetraplégicas
Sou o fugitivo das algemas invisíveis da vergonha de Rousseau
Em suma: sou egomaníaco e paranóico.

“amigos com sede no bar"

- é como comparar Picasso com Van Gogh...

- Mas eles não viveram na mesma época.

- Tá bom, Picasso e Dali...

- Não, o Picasso é muito melhor.

- Você diz isso sem dúvida alguma?

- Não, mas eu digo isso quase com certeza...

“frase de um jogador de sinuca”

que erroneamente me considerou um gênio
porque eu sorri.

“a genialidade não anula a medula”.

23.11.06

“Baudelaire de mau-gosto”

O velho estava sentado em suas partes de baixo escutando um adágio de Baden Powell numa antiga vitrola encharcada de madeira, embrenhado num trecho fidedigno de Charles Baudelaire, situação que, com um punhado de falsidade e bastante exagero, o fazia estremecer de pânico, alguma coisa a ver com um antigo ditado, talvez de Pascal.

Ao mesmo tempo o velho pensava em como terminar uma tripa solta de texto largada como ferida, sem perceber o distúrbio paralisante que Baden provocava quando acrescido de uma prosa curta de Charles Baudelaire, de modo que sentiu algo lhe escorrer pelo queixo, como saliva, ou sua própria imaginação fugindo de si como fumaça, como se ele próprio fosse uma guimba em brasa – os dentes no copo, olhando.

Ouviu grunhidos sufocados, pessoas se lamentando no seu pulmão. A música atravessou a leitura e ele olhou para o lado. A velha ao lado parecia uma orquídea envenenada, gemia pensamentos incompletos, lábios incompreendidos de branco, golpeava o ar dramaticamente, como costumava fazer sempre, por nada ou muito pouco.

O velho já havia aberto, cerca de dez minutos, uma garrafa de vinho uruguaio de seis reais e cinqüenta centavos, vinho parecido com sangue venoso, o mesmo que parecia ter tomado o corpo da velha ao seu lado, na mesma guerra, ou parecida. De modo que o aviso do fim da vida lhe obrigou a golfar e manchar as cuecas.

Enquanto se limpava viu a velha se arrastar até o banheiro, ainda tossindo muito, cabelos brancos como gotas aposentadas. Derrubou o livro no chão e seguiu a luz, esquiando em meias. A velha estava sentada – canelas marcadas com estrelas rarefeitas – no chão do banheiro, abraçada à latrina.

“O que foi?”, ele disse.

“Vou vomitar”, ela disse.

Inclinou o corpo e forçou o vômito, mas nada. Mesmo assim a cena era muito repugnante: a velha de camisola encardida, peitos decaídos como anjos demitidos, implorando à privada. Por isso o velho teve que voltar imediatamente ao quarto, onde reparou nos pingos de sangue no assoalho: seu nariz. Tonto, se atirou na cadeira. Viu a velha como um espectro esparramando-se na cama ao seu lado – convulsionando-se como um inseto virado de barriga para cima, com as patas esmagadas por um chinelo infantil.

Foi a primeira vez na vida que lhe veio com tanta força a palavra morte.

A velha começava a roxear, veias como alienígenas incubados na pele da testa.

“Estou morrendo”, a velha disse finalmente e com esforço, mas sem gaguejar e olhando o velho nos olhos, “os dela tão bonitos”, ele pensou, “violetas”. As mãos da velha em volta do pescoço esturricado, os olhos como a preparação para um salto ornamental de notas baixas.

O velho olhou para a velha e também achou que ela estivesse morrendo. Segurou seus braços e pôde sentir a pulsação de algo prestes a estourar.

A velha dizia palavras sem muita conexão, mas basicamente católicas. O velho foi correndo até a sala, o que quer dizer se arrastando. Atravessou a sala para apanhar sua boina, e o cão epilético, sem rabo, verrugas, oito comprimidos diários, feliz, lhe abanou o rabo.

O velho saiu como estava até a rua: cuecas azuis estampadas com estrelinhas e luas brancas, sem camisa, despenteado, sem cabelos. Correu até a avenida central sem conseguir coordenar o raciocínio, então lhe veio um trecho do “Mau Vidreiro”, de Baudelaire:

Há naturezas puramente contemplativas e perfeitamente inaptas para a ação que, no entanto, sob uma misteriosa impulsão, agem por vezes com rapidez de que se julgariam incapazes.

Isso lhe deu coragem para se atirar na frente de um táxi no meio da avenida central. O taxista não tinha cabelos, mas se comportava como se tivesse. Parecia assustado como se tivesse cabelos, mas não tinha. No banco de trás havia uma mulher escondida por sacolas cheias de detalhes assaltados por grifes, as sacolas e a mulher, ela pintada de batom como um palhaço, ou como uma mulher mesquinha recém chegada à alta sociedade.

“Sai do carro”, disse o velho de cuecas, “tem uma pessoa morrendo”, as mãos sobre o capô.

“Vai te fuder!”, gritou o taxista, finalmente como quem não tem cabelo.

E arrancou com o carro.

O velho voltou correndo, ...vidros que tornem as coisas mais belas..., bastante desnorteado, sentindo marimbondos no seu peito, pernas tentáculos, a marreta do vinho na têmpora, ...mas que importa a eternidade da danação para quem encontrou num segundo o gozo infinito?. A velha... Então precisou sentar.

Acabou encontrando um ponto de táxi, onde havia um táxi, outro saindo. O táxi que havia estava vazio e era antigo. Havia um homem sentado de costas numa cadeira de náilon lendo o jornal. Seus bigodes diziam algo um pouco vago sobre o seu caráter.

“Amigo, preciso fazer uma corrida”, disse o velho.

“Estou ocupado”, disse o taxista, virando a página do jornal.

“Tem uma pessoa morrendo. Roxa, sem ar”, disse o velho.

“Puta que pariu!”, disse o taxista por trás da cortina de bigodes.

Fechou o jornal, entraram no carro, levaram a velha para morrer no caminho até o hospital e, para o velho, até o fim daquele dia, tudo aquilo parecia algo de muito mau-gosto escrito por Charles Baudelaire.

“liev tolstói”

que fetiche
ter nascido
no mesmo dia
em que morreu
Ivan Ilitch.

21.11.06

“celsius”

Não existe febre
é pura consciência
gelatinosa de cismas
Eu bem que gostaria
mas não sei carregar
almas suicidas
Muito mal carrego
minhas próprias muletas
A vida é um gatilho
que implora ajoelhado
por olhos sujos de pólvora
e um último suspiro
das ampulhetas.

20.11.06

"enquanto Juca lia Fausto Wolff no jornal"

Juca e Dato numa manhã de frio, enroscados debaixo de cobertas já não tão limpas, no chão da sala com cozinha embutida. As mãos vermelhas e quebradiças refugiadas em xícaras com café forte e amargo. A chuva estala as janelas e é tão difícil se ver livre da poeira quanto do passado. Os jornais estão espalhados pela sala, com marcas antigas de copos de vinho e algum amor perdido em noites de sono. Dato usa apenas duas meias de lã acinzentadas e uma cueca samba-canção esgarçada. Está fora de forma e ostenta mamas salientes, mas ainda tem belas cochas e se orgulha delas. Juca corta as unhas do pé numa bacia e fuma um cigarro ao mesmo tempo. Com os cabelos presos em coque por uma caneta de cinqüenta centavos, bate as cinzas no tapete isfahan “do tipo polaco” e funga com o nariz entupido por causa da alergia ao pelo do gato. O jornal dobrado no chão.
"Outro dia me chamaram de reacionária porque eu disse que era bom a gente abrir o olho com a Amazônia, antes que ela vire um parque aquático americano", diz Juca olhando para o jornal, cortando as unhas e tragando sem parar.

Dato apenas olha e não diz nada. Odeia cigarros e quem os fuma, com exceção da Juca. Em alguns momentos. Não neste. Depois estica a coluna com os braços para cima. Se sente feliz porque ainda consegue ver as linhas das costelas através da pele. Relaxa novamente. Então olha para suas mamas enrugadas: o tempo não dá trégua a qualquer tipo de intenção beatificante.

No rádio, a mulher tem uma voz nasalada e levemente devassa. Um pouco fora de sintonia, diz:

A seguir, concerto número 1 para piano de Brahms, pela Orquestra Filarmônica de Israel, com regência de Zubin Mehta e Radu Lupu ao piano.

“Radu Lupu, quem?” – pergunta Juca esticando o jornal.

“Um solista...” – diz Dato calçando um pé do sapato.

“Sim, mas um pianista havaiano?”

“Como você sabe?”

“Pelo nome... Lupu... Deve ser nativo.”

“É romeno...”

“Eu achava que Lupu era doença crônica...”

“Lupus...”

“Pois é...”

“Ataca principalmente mulheres brancas.”

“O que causa?”

“Inflamação no corpo, nas juntas, no couro cabeludo... Uma doença africana.”

“Boa forma de vingança.”

Nenhum comentário.

“Mas Lupus não é também uma marca de meia?” – diz Juca lixando o calcanhar.

“Lupo...” – diz Dato.

“Pois é...”

Então Dato levanta e mistura mais conhaque no seu café. Cueca branca de braguilha aberta. Cabelo amassado na cabeça desproporcional. O rosto vincado por dias e dias de dobras de travesseiro. Barba demais, o pescoço tomado. Meias cinzas de algodão.

“Você pensa que é quem, Samuel Spade?” – diz Juca recolhendo unhas do chão.

“Só se você fosse uma daquelas putas dondocas de piteira na boca” – diz Dato calçando outro sapato.

“E digamos que eu seja, ou digamos que eu possa ser uma dondoca puta...”

“Então neste caso, minha querida, eu sou, sim, o Samuel Spade.”
Se beijam no sofá. A um incomoda o mau hálito do outro. Não reclamam mas, em compensação, também não fecham os olhos. A chuva aplaude do lado de fora. As folhas nas árvores se beijam, riem e choram. A gravação de Brahms é tão antiga que faz o mundo inteiro chiar na arranhadura da vitrola feita de madeira e ouro forjado. É quarta-feira, dia da independência, mas parece domingo e todos estão presos de alguma forma, a maioria sem saber. Dato ama Juca que ama Dato que ouve há anos que Juca o ama e diz há anos que ama Juca e pensa há anos que se a ama não deveria precisar dizer tanto que ama Juca. Mas às vezes são ditas tantas coisas que não sobra tempo para o amor. E mesmo no céu não há fogos de artifício em lugar nenhum.

"Uma poça transparente" (Elvis Noronha)

Uma poça transparente
Embora aparente
Ser de água verdadeira
Se olhares com paciência
É apenas aparência
É de água passageira

Mas um poço bem fundo
Que atravessa o mundo
Com sua água bonita
Se olhar sem medo
Não esgota tão cedo
Tua reserva infinita

Uma chuva apressada
Embora encharcada
Pareça temerária
Se olhar daqui do chão
Verás com exatidão
Que é de água temporária

Mas uma chuva carregada
Que causa enxurrada
E não some com o vento
Se olhares confiante
Tua água abundante
Molhará por muito tempo

Com tua poça eu posso
Pois se piso ela se escassa
De tão raso sentimento
Paixão vazia que passa
Mas não podes com meu poço
Que bomba água colorida
Que te engole com amor
E te cospe em seguida
Pois a sede que procuro
É do tamanho de uma vida

Tua chuva molha nada
Nem preciso de abrigo
Dura pouco e se evapora
Não quer ficar comigo
Mas a minha molha muito
Rega plantas e tudo o mais
Pois minha água apaixonada
Sabe o bem que faz
Quando encontra a terra seca
E o solo satisfaz


o poema acima foi uma surpresa enviada por um cara legal chamado Eros Casabranca, que me disse o seguinte:

É um poema de uma pessoa grande, maior que quase tudo. Só não é maior que a paixão que a move.

18.11.06

"Latrocínio na Cidade Baixa"

Sentados onde os estupros aconteciam, pessoas enxergavam coisas reversas através de planetas escuros. Lentes de solidão adocicada, folhas amarelas vomitando pólen, cinzas amarelas amarelas cinzas, segundos suicidas em reviravolta, heranças hesitantes do marinheiro de Whitman, alguns outros pintados de batom esmurrando cérebros, garotos raquíticos com anemia exibindo seus shorts de basquete. Algumas meninas mais bonitas e bem formadas já não sabem como se posicionar e ainda assim continuar no mesmo hemisfério. Aquela mão cheia de dedos que sobe por dentro dela, um punhado de grama lhe tampando a cortina dos olhos, essa poeira névoa coquetel de frutas cristalizadas, essa síndrome sobrevivente, essa poeira... Todos mortos, com óculos pretos, mascando a própria bochecha através de unhas decibéis.

Aftas como séculos de restos dos desejos múltiplos e irrealizáveis. Saltos como a espuma da loucura de alguém. Alguém que talvez houvesse passado a mão na sua jaqueta beat – eles a arrancaram como se fosse o precipício: para longe dos seus quinze anos. De resto – o céu escorria verde mofado de suor sanguíneo – estavam também ali seus traços procurando farpas de sol diante da cegueira lunar. Sua pele marcada pela reclamação da emergência populacional em castas. Talvez a terra verde solar na testa morna da menina pobre que recobrou seu fôlego gelatinoso num chafariz mentolado. Uma mesma menina que, poucos passos antes, tinha me roubado a jaqueta das idéias também. Agora enxugava o soluço cartilaginoso do adeus hesitante, o suor que pouco antes me inventou um livro que eu li tão rápido quanto fiz o último movimento antes do soco na barriga, para não ter que dizer a ela, levada para longe, depois que me deu sua luz, a mesma luz que me falta quando penso nela agora, trapo de brim: morta e escalada por nuvens aflitas.

E assim pude ler o pergaminho do seu tempo. A atitude é tudo o que importa justamente por ser estúpida. Escutava-se o desesperado lamento das coisas que se moviam em silêncio. Valsa muda de ingênua comoção em atitudes metabólicas. Todos bravos idiotas anjos antipáticos cativantes alcoólatras sensíveis que perderam a emoção porque se tornaram cúmplices dos escravos (dela) e depois os próprios escravos (ela sendo arrastada) e era justo. Garrafas em punho enquanto eu pensava em mim mesmo como uma grande farsa fragmentada em rostos sem fim, como o dela, ali, a boca monstruosa, o estômago parindo o medo, uma programação infinita de um mundo incompreendido, engaiolado em si mesmo, esparramado sobre as tripas do meio-fio.

Sua jaqueta, seus quinze anos, minha estrada fatiada em lágrimas de farpas e dúvidas permanentes, quando bem repartidas num filete de carne.

Acordo com quinze olhos fartos dentro das idéias sonolentas e firmes. Cansado de tanto que o nada tentava nadar e nadava tanto que nada acontecia entre tantos entretantos.

Cansado – totalmente cansado – dessa mentira pavorosa em letras preocupadas com fins históricos, que se amontoam como vermes nas prateleiras que assistem ao estupro. Dessa inútil contradição de espécies disciplinares (talvez uma sirene, talvez uma posta) da disparidade absoluta entre coisas tão bem-colocadas.

Desisti de esperar e fui, embora meu fantasma mais sensato tenha me aconselhado a escolher o caminho do aconchego teórico. Pobre viúva virgem, com frio prostituto, sem sua jaqueta... Te levo para casa. Não, não se canse ainda. Vive-se o que se pensa, e não o contrário. Sem fim que o fim é parar. Somos todos essas caixas vazias, essas saias insaciáveis, essas pernas suadas de passos mudos e latentes em assoalhos distantes e fiéis, esses corpos coloridos estendidos em tesão agudo frustrado guardado placidamente para o livre entendimento de feridas hemofílicas intactas através de categorias para o fim dos tempos. Mas não há fim dos tempos. O fim dos tempos é agora, está sendo, já foi, não há motivo por que falar no fim dos tempos. Somos o tempo e como ele somos também seu fim e começo. Não se preocupe com o fim dos tempos, querida, posso te chamar de querida, não posso?

Carnes secretas entranhadas em cada esquina esfaqueada. Entre cada cerca contaminada de passos tortos por um desejo comum. Um carro de janelas abertas cheirando a acordos ditatoriais através de charutos molhados. Um pedido de perdão do exterminador. Uma rosa, pelo romance. A explicação dos moinhos de vento numa parede com tinta acrílica. Um salto em órbitas oftalmológicas. Um bar com o nome do pintor preferido. Cabeças nos colos de poetas, uma briga de casal – a mulher bem mais velha se defendendo de um canalha saxofonista – um sorriso, outro, mais outro. Dois apertos de mão, uma canção chorando em pânico. Gritos espremidos em sussurros pré-matinais. Outros tantos corações apertados e divinamente satisfeitos – desamparados pela história dos homens, pela derrota dos sonhos prévios, pelo alvoroço das flores mortas (levadas pela gilete do vento) as quais amamos como flores rançosas, e a quem devemos tudo. De quem precisamos nos livrar: o adeus de cada dia.

Precisamos vê-los todos partir como jaquetas – eram dois, três? – sem lenços ou rodeios. Nada disso importa agora. Tudo é possível quando os sonhos deixam a realidade pequena. Adeus a tudo que está morto. Para haver o novo dia em que o sorriso patético dê lugar ao grito primitivo do diálogo, mesmo que diante do espelho: duas carreiras, dez braços apontando para a – mil braços! um milhão! – mesma direção sem dizer adeus, pensando bem (pensando?) sem dizer perdão. Dez braços reduzem a distância do sonho. Dez sonhos reduzem a distância do espaço. Dez passos reduzem a distância do soco. Mas não é ela ali, sou eu.

Acordo recíproco e completo de alma, mas em outro caminho distante do seu trançado de brim: no estômago secreto da minha mais honesta mentira vermelha. Que me escorre pelas bainhas.

16.11.06

“poesia e queda”

O tempo
é a areia
do homem
Dessa areia
uns poucos
– loucos? –
fazem castelos
onde se perdem
pelos corredores
A poesia é sempre
a diluição do tempo
A poesia será sempre
a queda de um castelo.

14.11.06

"o erro do significado"

O significado
de uma palavra
dura o tempo
que você souber
persistir no erro.

O significado
de um amor
dura o tempo
de uma dúvida
bem concebida.

O significado
de uma amizade
dura o tempo
que dois puderem
dizer não juntos.

O significado
de um deus
dura o tempo
que um homem
precisar de outro.

O significado
de um poeta
está nas palavras
que não existem
no seu poema.

O significado
de um poema
está na falta
do que não há
nas palavras.

O significado
de um erro
dura o tempo
da frase certa.

O erro somos nós.

13.11.06

“O intelectual”

Aqui no parque existe um chafariz desativado aonde os filhos das prostitutas vêm apanhar sol e gripe fugindo dos preservativos usados e objetos infectados cortantes aparentemente com sucesso pelo meu ângulo de visão ausente de vista.

Dia desses estava eu sentado às margens do tal chafariz mais uma vez o truque dos óculos de sol forjando uma presença solene comumente confundida com artrite.

Estava com este mesmo caderno de anotações no qual escrevo agora tentando em vão endireitar pensamentos preconcebidos quando duas dessas pequenas criaturas mais felizes do que eu pobre animal envelhecido passam um já com bastante verme na barriga e cueca vermelha de náilon o outro com aparência abatida e um pedaço de pau na mão.

Este último tão tristemente e com olhar beatífico então olhou para mim e disse:

“ô barbudo pára de estudar um pouco ô!”

"a queda"

Cabelos caem a casa cai
poemas caem calças caem
caem os dedos cai o sol
cai a chuva caiu o mar
Agora outra vez vai cair
o sonho que não amanheceu

Inútil é lutar contra o impossível
inútil e extremamente necessário
Porque se a queda é imprevisível
a queda é inevitável.
Então façamos dela beleza maculada
besta indomável, fúria pagã, cura
façamos dela beleza taciturna
beleza de pedra bruta, coração de lava
que permanece irretocável sob onda submersa
a não ser por Netuno ou então São Pedro
coração triste e exposto através dos séculos
coração faminto coração negado
coração em queda

Cem bastilhas caem todos os dias
e não tocam a tua margem
Caímos ao amar caímos ao vencer
ao nascer do dia à noite caímos lassos
conforme brotam pêlos e caem as carnes
caem os juros caem os muros os porres
Cai um sobre outro muro mudo
submundo de cobre
Muros de paciência!
Muros de evidências!
Quedas institucionalizadas...

Perdemos nosso tempo
pensando no que caiu
por que caiu quando?
Não demos conta da queda

O canto dos suicidas invertebrados
o engulho das aves de asas amputadas
a lubrificação das virgens esquecidas
a gripe final do tenor com sífilis...
O erro grave de dramatizar a queda
mas então que façanhas
que dores, que tréguas?

Síndrome de alguns anjos-poetas
a queda é fruto de não se contentar com a vida
que é a morte de passagem pelo nada
da existência universal plena e secreta

Portanto tirano perdulário amante
presidente secretário de finanças
carcereiro da morte mercenário
você colarinho branco ambulante
vômito anão mau hálito eunuco
crente pálido polido compreensível
você com buracos de culpa na cara!

Esquece o que te parece imprevisível
esquece o que te parece inevitável
Anuncia o que te soa agora incompreensível
nega tudo aquilo que te parecer vingança amarga
Esquece as criancinhas felizes que te atormentam

Preocupado com pequenos detalhes (inúteis)
poda com carinho teus galhos de ameba
poda de joelhos na terra desertada a tua queda

Depois esquece tudo dá umas voltas e morre
Então volta e vê o trajeto do teu peito
aquilo que foi abandonado por medo
para serventia da liberdade estagnada em gaiolas
para ser possível se sentir inteiro na solidão
Tudo caiu como a casa caiu o membro amputado
a capa do vilão a máscara das mortes elétricas
Caímos todos em vão, não há porque temer o fato
Abraça portanto teu vizinho caído e esquece o resto
(por que não?) esquece a culpa esquece a escotilha
somos todos marinheiros de primeiras viagens
Não há o que perder nessa viagem ridícula
se as coisas forem tratadas com carinho
Pois longa é a queda (não há tempo para suplícios)
e muito curta a viagem.

12.11.06

"sonho revelador"

Um cientista maluco prêmio Nobel
havia descoberto que de fato a pele humana
era alguns milímetros cúbicos menor
que o volume corpóreo que ela cobria
E assim ele chegou à conclusão de que as pessoas
só eram totalmente verdadeiras nuas
De modo que a maioria vestiu mais um casaco

10.11.06

"A Morte Absoluta" (Manuel Bandeira)

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.


Essa relíquia quem mandou foi o Fernando Ramos, editor do Jornal Vaia, sob coerente justificativa:

"Justificativa? E precisa?"

Não, Fernando, dessa vez não...

"Ausência" (Drummond)

Por muito tempo achei que ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba de mim.

(com o pensamento em Ana Cristina Cesar)

Quem enviou esse poema urgente foi Natércia Pontes,
com a seguinte justificativa:

"porque os dois são fodas".

É justo, justíssimo...

“anti-anti”

reparem que
boa parte
da chamada
arte de vanguarda
não passa
de uma tentativa
covarde
de um intelectual
sair do próprio
corpo.

mas arte
é efeito do corpo
e o corpo pertence
à arte
nunca o contrário.

corajosos mesmo
só os viciados.

9.11.06

“Perdido na Ilha de Man”


Pode ser que haja algo errado
inclusive talvez seja provável
Agora sou um homem que compra
Incenso.

Os ladrilhos do corredor em chamas
anunciam em limo a peruca cinza
da corrupção sutilmente suturada
Escorrem líquidos de tristeza inútil
pelas janelas frígidas de cristal barato
Enquanto isso eu ando tonto e absurdo
pelas ruas procurando a essência do meu
Incenso.

Outro dia meu avô (certamente
há algo errado) saiu do seu lugar
poltrona epilética e cão xadrez
e foi ao banheiro aparar os pêlos
(que pêlos?) de cada veia narina.
Enfureceu à siciliana por causa do
Incenso.

Ele olhou e disse, “que cheiro brabo!”
Eu virei e pensei: dentadura no copo
Então ele disse, “vai ter futebol na tv”
E eu fui até o banheiro correndo muito
pois por um momento, por um minuto
achei que a vida valia tanto quanto aquele
Incenso.

8.11.06

“Casais em Crise”

Feliz quando emudece
quando ando meio triste.

Sina dos ansiosos e descamisados
sonhar com quem lhes puxe pela mão.

Mas observo ao meu lado os olhos gritantes
de homens e mulheres desabitados forçados
a se calar pelo tanto que falam com ninguém.

“parênteses”

mulheres passam como os crimes do governo
subterfúgios de náilon violados por decotes
vozes saúvas imploram com medo
pelo triunfo da agonia renegada
através de êxtases calculados
à medida do sossego impossível.
decidiram por mim que preciso ficar sozinho
(as pernas doem, os porres já não são os mesmos)
mas do meu escalpo pululam multidões (fantasmas).

“condominal”

fui denunciado criança sem pele
passei em comichão pelo tiro do estilete
devagar sempre sobressaindo em brilho, o pus
de repente uma vaga luz me embota o estômago
acrescento ao bolo de merda pela boca
e não sai nada.

nasci no meio de uma terra infértil sob enfoque duro
na casa ao lado farta família negocia enquanto janta
um prato ziguezagueia até cair no chão e explodir
os olhos são da mesma propriedade que os pratos
todos se amontoam no chão atrás de quê?
jantar de vidro.

7.11.06

"Liberdade" (Carlos Drummond de Andrade)

O pássaro é livre
na prisão do ar.
O espírito é livre
na prisão do corpo.
Mas livre, bem livre,
é mesmo estar morto.


O poema acima foi enviado pela querida Julia Mendes, pelo motivo abaixo:

Sabe que poema que fica é poema pegando naquele ponto das costas que você não alcança direito... Esse, li nos meus 13 anos, comprei um livrinho do Drummond, folheava as páginas e escolhia para ler só os pequenos poemas. Sabe né, preguiça de adolescente. Ansiedade de criança. Não por menos ser livre: "livre bem livre é mesmo estar morto". É o meu ponto. Nunca alcancei a liberdade nas costas.

6.11.06

"Soneto do Amor Total" (Vinicius de Moraes)

Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te enfim com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito amiúde,
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.


A obra-prima acima foi enviada por Paula Merlino, sob a seguinte justificativa:

Léo, acho que Vinícius foi o primeiro poeta que eu conheci e amei, no tempoem que eu ainda achava que "no meio do caminho tinha uma pedra, tinha umapedra no meio do caminho" era só mais uma das músicas do meu pai (ainda nãohavia para mim o Drummond)...Esse soneto eu descobri quando era adolescente e me apaixonei pelo meuprimeiro namorado... Fiquei sem entender como ele conseguia traduzirexatamente o que eu sentia, e acho que continua me traduzindo sempre que meapaixono de novo. Por isso acho que é o mais especial, pois participou demaneira especial de um momento muito especial pra mim: o momento em queencontrei o primeiro de todos os muitos homens da minha vida.

5.11.06

"Estou com 25" (Gregory Corso)

Com o amor minha loucura por Shelley
Chatterton Rimbaud
e a tagarelice-carente dos primeiros anos
já fez correr de um ouvido a outro
EU DETESTO OS VELHOS POETAS!
Especialmente os velhos poetas que recuam
que consultam outros poetas velhos
que falam de sua juventude em suspiros,
dizendo: - eu fiz estes naquela época
mas isso foi naquela época
foi naquela época -
Ah eu faria calar os homens velhos
diria a eles: sou amigo de vocês
o que vocês já foram um dia, através de mim
serão novamente -
E depois à noite na intimidade de suas casas
rasgaria suas línguas que só sabem se desulpar
roubando-lhes os poemas.

4.11.06

"Procura da Poesia" (Carlos Drummond de Andrade)

Bom, eu tive que escolher essa porque me parece uma das poesias mais completas de Carlos Drummond de Andrade.

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

"poemais curtolindo"

Logo de cara recebi uma importante remessa de de C., com dois poemas antológicos dentro, para o concurso “poemais curtolindo”. C. sugeriu duas peças: primeiro, "Tabacaria", de Álvaro de Campos (um dos disfarces líricos de Fernando Pessoa); segundo, “Contagem Regressiva”, da poeta-musa Ana Cristina Cesar.
C. justificou assim suas escolhas: "tabacaria me fez despertar para Pessoa, contagem regressiva me amassa o peito. queria sentir aquela dor. roubá-la do sujeito poético da ana e mastigá-la todinha."
Como o primeiro poema é longo achei melhor fazer um link para ele abaixo:
O segundo é poema curto, mas igualmente longo. Segue abaixo. Deliciem-se... E mandem seus poemas.

“Contagem Regressiva” (Ana Cristina Cesar)

Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos.

3.11.06

“Os Fugitivos”

As pessoas se escondem atrás de rimas
mas não conseguem alcançar palavras.

As pessoas se escondem atrás de cílios
pintados enquanto os olhos se enganam.

As pessoas se escondem atrás de dramas
mas não conseguem ver quem não chama.

As pessoas se escondem atrás de fatos,
não representam a insistência do mar.

As pessoas se escondem atrás de nós,
nós que já não estávamos mais lá.

1.11.06

"poemais curtolindo"

ESTÁ ABERTA A SESSÃO "POEMAIS CURTOLINDO", NA QUAL CADA LEITOR, QUALQUER LEITOR, ME ENVIA UM POEMA QUE TENHA MARCADO A SUA VIDA E ESCREVE ALGO SOBRE POR QUE TER ESCOLHIDO ESTE POEMA. PODE SER QUALQUER POEMA, DE QUEM FOR.
PUBLICAREI, COM NOME DO REMENTENTE, CONFORME POEMAS FOREM SURGINDO.
OS TEXTOS DEVEM SER ENVIADOS PARA O ENDEREÇO leomarona@gmail.com E DEVEM SER CURTOS, NA MEDIDA DO POSSÍVEL, PARA O CASO, POSSÍVEL?, DE EU RECEBER VÁRIOS POEMAS JUSTIFICADOS.

“Elegia ao Erro Primordial”

O sexo é acima de tudo
um processo desequilibrado
sem igualdade.

Ao contrário do que exigem os pares
e do que dizem hipócritas e especialistas,
o sexo não é uma negociação estabelecida
em percentagens.

O sexo é um jogo de azar
injusto: é violento,
desmedido e sujo.
Máfia russa roleta
entre decapitados de
coração partido.
Muitas vezes estúpido,
estupidificado.

Tal é a real raiz humana
e sua tranqüila tragédia:
permanecermos greco-romanos
mesmo insanos, mesmo cegos,
mesmo mortos.

É o que nos torna verdadeiros,
é talvez o que nos torne poéticos,
apesar de cúmplices desonestos.

Aliás, de acordo com a espécie,
se observada com afastamento,
o amor é a maior tagarelice,
o amor quase nunca é verdadeiro.
Veja só, o homem: desaparecendo!

E normalmente a verdade não é fácil
de suportar no mundo das aparências.
A verdade não é equilibrada nem
o mundo das aparências utopias é.
A verdade nem mesmo é verdadeira!

E as mulheres desequilibradas
são portanto mais livres, mais inteiras.
E isso as torna sexualmente mais verdadeiras.
O sexo, que é a vingança da vida contra morte.
E que talvez seja a única verdade total, porque nega.
Afinal, as relações humanas são apenas
extensões sociais dos nossos instintos e erros:
os mais vergonhosos, os primordiais.

E para todos resta apenas conhecer o amor.

31.10.06

“por trás dos hospitais”

Hospitais sempre foram para mim um estímulo sexual indescritível e vergonhoso, quase de perversão. Depois de pensar sobre por que é assim, cheguei à conclusão provisória de que, como o sexo é a negação da morte e o hospital é o ambiente de morte por excelência, então o estímulo sexual que ele me provoca – através de portas entreabertas, jalecos brancos com assinaturas dos nomes das enfermeiras em letras de formato clássico, a brancura devassa dos pesadelos molhados de meias-calças até o início das coxas, e até mesmo as macas vazias num canto do corredor – talvez venha de uma tentativa desequilibrada de tentar inconscientemente equilibrar os pólos: contudo um instinto profundamente moralista.

No hospital, até mesmo os elevadores apresentam clitóris secretos. Tudo parece lascivo, como se não se pudesse escorregar por paredes geladas de éter, como se não poder pensar no assunto fosse mais erótico do que o próprio assunto pensado em pequenos atos. Um lugar simbolizado por cruzes, onde é proibido sorrir, por vergonha dos moribundos e mortos e vivos mortos que circulam. Num lugar como este, a libido é a única forma de reação carnal contra a putrefação. Isso ou os olhares baixos que dizem amém ao diabo. Porque pensar muito é mentir. E sentir é se corromper socialmente. Portanto, quem se veste de branco todo o tempo está fadado ao pecado.

Foi lá também, no refeitório, que pensei sobre outro assunto diretamente ligado ao sexo:

Por que é comum homens perderem a vida por mulheres desequilibradas de personalidade explosiva, violentas?
Porque o sexo, que é o que move as pessoas de encontro umas com as outras, acima de tudo, é um processo desequilibrado, sem igualdade. Ao contrário do que os pares exigem, e daquilo que dizem os especialistas e os hipócritas, o sexo não é uma negociação estabelecida em percentagens. É um jogo de azar injusto, violento, desmedido, mafioso, muitas vezes estúpido, bestificado. Essa é a verdadeira raiz humana, e sua tragédia. Por isso continuamos gregos, mesmo mortos. É o que nos torna verdadeiros, aliás, de acordo com a espécie quando observada com o devido afastamento. E normalmente a verdade não é fácil de suportar. A verdade não é equilibrada. A verdade não é nem mesmo verdadeira. E as mulheres desequilibradas são portanto mais livres, inteiras. E isso as torna sexualmente mais atraentes. O sexo que é a vingança da vida contra a morte. E que talvez seja a única verdade total, porque nega. Afinal, as relações humanas são apenas extensões sociais dos nossos instintos e erros, os mais vergonhosos e primordiais.

30.10.06

“o enigma”

as costas
da gal costa
são o maior mito
sexual
da modernidade
recente;
e tudo aquilo
que com elas
tiver vindo
às costas.

"o idiota"

não se preocupe
em ser o que você
não consegue ser.

preocupe-se apenas,
isso sim, em não ser
o que você pensa que é.

“epitáfio de um ditador”


sua vida foi um ajuste de peles:
constante convulsão mitológica.

“prelúdio para um serial killer”

dois homens sob um andaime
debruçados em seus sanduíches.

uma mulher passa como mais pernil,
com a vida dividida em duas
por uma calça apertada e canelas finas.

um homem olha para o outro:
“e então, cometer um crime?”,
a saliva da satisfação proibida:
“não” – o outro responde – “fazer arte.”

“academia clandestina”

porque de acordo com as idéias
pelos poetas reclamadas
(refiro-me aos de almas aladas)
a poesia é uma tentação débil –
apoio de mãos leves na escuridão
– ato falho em asas de anjos –
que são poetas superiores à palavra
que sai de um nada para outro nada.

“cerveja”

pensei em algo de que gostei,
fiz algo de que não gostei.
não fiquei satisfeito com isso.
tentei sorrir,
tentaram por mim,
não foi possível.
pedi licença:
“buscar cerveja”,
a dentes sujos,
indiferentes de tristeza.
voltei alegre de corpo cheio,
lotado até a alma de cerveja
para o copo de mim mesmo.

29.10.06

“olhos fechados”

não existe mais a desculpa da poesia original
depois de Carlos Drummond de Andrade:

Antes de mim outros poetas,
Depois de mim outros e outros
Estão cantando a morte e a prisão.

portanto, meus amigos mortos, fadados,
falemos sobre a especificidade da poesia,
que quanto mais logo mais se distancia,
que quanto mais demora menos se atrasa.

“geração?”

todos que escrevem pra valer
escrevem pra ficar na história.
isso acontece na cabeça
bem antes da capacidade,
no caso comum dos gênios.

mas quem escreve pra valer,
por sorte, de duas uma:
ou é um entusiasta simpático
relacionado com as tendências
que os sustentam sorridente,

ou é um louco sem rumo,
a quem se chama gênio,
por mais que ele morra
normalmente quando
já morreu há muito tempo.

“os amantes desconhecidos”

frente à lápide
dois mortos,
uma tumba,
cinco velhas
e cinco anos.

“eles trocavam textos”,
uma velha disse enquanto
seu lenço chorava ciscos,
“nunca se viram antes”.

26.10.06

“boate”

ela tinha
um jeito
meio ultra
pós-moderno
de dançar:
além-influências.

mas o mau
do amor
é que ele
começa a falhar
quando nomeamos
sua presença.

“apenas uma questão de gênero”

decepados,
os versos são o de menos.
o poema é aquela verdade
intransigente e mentirosa
encravada de maré escura,
escrita pela própria língua
que o lê,
sendo que
ela nega
perspectivamente o poema,
tal qual o homem de gravata
acorda para navegar a morte
através de cifras mitológicas
e cabeças roxas de meninos,
decepadas.

"O cão e o frasco" (Charles Baudelaire)


“Meu belo cão, meu bom cão, meu querido totó, aproxime-se e venha respirar um excelente perfume comprado no melhor perfumista da cidade.”

E o cão, mexendo o rabo, o que é, acho, nesses pobres seres, o sinal correspondente ao riso e ao sorriso, aproxima-se e curiosamente pousa o úmido nariz no frasco aberto; depois, subitamente recuando de pavor, late para mim, à guisa de reprovação.

“Ah, miserável cão, se lhe tivesse oferecido um embrulho de excrementos o teria farejado com delícia e talvez devorado. Assim, até você, indigno companheiro de minha triste vida, se parece com o público, a quem nunca se devem apresentar perfumes delicados que o exasperem, mas somente imundícies cuidadosamente escolhidas.”

"divina comédia animal" (Julia Mendes)

dizem esses existencialistas
que a vida só há quando a vida passa
sem haver de se perceber a passar.
esses animalescos
se não sofrem o quadro esquizo das minhas angústias
não haverão
de conhecer minhas alegrias.

23.10.06

“o primeiro homem foi uma mulher”

só podia mesmo
se chamar Safo
a poeta grega
cantora do amor
entre mulheres
na ilha grega
de Lesbos.

“pós-cultural”

são tantas as possibilidades de arte
que inúteis ao tocar no assunto
tornam-se indiferentes ao vago
tratado com acuidade que assunta
o direito legítimo de isolamento
por fama, por cama, por gaze:
ressentimento que resseca frases com dúvidas
permutas adiantadas tanto quanto geriátricas
ou comadres de mijo debaixo de camas sorridentes
como se arte de vanguarda fosse um quadro sob análise de queixos
e escutar fosse um meio sem falhas de humanidade celofane.
ou como se uma frase contrária ao que se revela arte queixosa
fosse restar não tão simplesmente como algo
que vago nunca deu realmente certo
– apesar das paisagens moralistas –
quanto o medo do sentido absoluto
que tanto apego causa ao eclipse.

20.10.06

“morte e vida quarta-feira cinzas”

O amor havia se fantasiado de cigana. Nos encontramos em Santa Teresa, em meio a pensamentos de confete, e terminamos numa cama desfeita, arrepiados de saliva. Depois que o amor tirou a fantasia, ou melhor, depois que a fantasia foi arrancada com os dentes deste que vos confessa, não houve sono nem sexo, mas houve tudo, sem nexo, pois era o amor outra vez e o amor, quando é outra vez, não admite sono nem sexo, de modo que dormimos de olhos abertos para dentro, abraçados enquanto os ponteiros do relógio derretiam sobre as notas soltas de uma orquestra dissonante no fundo do corredor já sem prédio, dentro do bairro já sem cidade. Não podia amá-la, mesmo fantasiada, afinal não se ama o meio, o amor, mas o fim, aquilo que ele não diz. E no vazio do embalo coxo de uma dança com poucos movimentos calamos juras de carnaval com beijinhos de esquimó e asas de borboleta foram encontradas dentro dos nossos bolsos, dos meus e do amor travestido de cigana inamável. No dia seguinte, como era de se esperar, ele o amor, ela a cigana, já não estavam mais lá: a fantasia era minha. Olhei no espelho e nem eu: trapos sobre um corpo estranho atravessado por idéias de sorriso no choro incontido em gases violetas. Não era eu mesmo, mas foi tão bonito! Da pia do banheiro fiz a manjedoura. Das lâminas do êxtase a profecia. Do pulso as água de minhas palavras vermelhas. E ao lado da barriga aberta de sonhos inatos, nada além de uma carta escrita com letras gregas, trêmulas de vinho, dedicada àquela que se foi sem ter vindo. Escorreguei pelas escadarias sem saber que as escadarias eram serpentinas desenroladas conforme passos. Quando cheguei no não sei onde chegar, percebi com os dedos dos sonhos – ou seria ela? – que com sorrisos não se cabia mais nas ruas. As pessoas em volta, em minha homenagem, insistiam em ignorar minhas perguntas. Mas elas cabiam, pois carregavam pastas e frases postiças, além de carreiras de tosse. Uma ofendia a madrugada, agarrada a um poste. Outra acompanhava um funeral, cercada de mais alguns conhecidos. Entre eles um outro, muito parecido comigo, por sorte deitado, mãos cruzadas de céu, era levado pela ressaca de mãos e lágrimas, tal qual o mito de Noel. O sol fazia barulho de expectativa. As crianças estavam embriagadas, obscenas, envergonhadas dos adultos. E os adultos esfaqueavam sombras, desejo de serem reconhecidos pela própria emoção. Pus as mãos nos bolsos, pus atrás dos olhos: as asas haviam se desmanchado em cinzas da quarta estação. O sol tocava surdo a chuva reco-reco o ritmo de outro mundo onde as coisas arrastavam a pressa de um mundo pintado no interior dos anos que não passaram; ficaram deitados nos bancos de praça sussurrando nomes antigos cobertos pelas páginas sujas das notícias de ontem: olhos necrosados pelo sentimento do mesmo mundo faminto, tão perto, tão colo, tão longe, tão calo, apesar de nosso, que é hoje e sempre, meu amor. Não amo porque sou o amor, morto apesar de eterno, asco de asas pálidas perdidas como olhos pintados na cor esquálida dos bolsos secretos, apesar do que o cérebro degolado monta quando não quer se despedir do adeus.

“constatações óbvias não momentâneas”

as coisas estão ficando bastante perigosas,
existem sérios riscos de acidente no ar.
persistem os critérios cínicos e o mar,
apesar de parecer uma estultice heróica
seu amarelo cansado de tanta ressaca,
acorda de manhã de acordo com o espelho.

Caetano fez um bom disco de músicas inéditas,
Buarque fez um mau disco de músicas inéditas,
Bob Dylan fez um bom disco de músicas inéditas
(só que as letras foram plagiadas: sorte do poeta).
Marisa Monte está tocando o cavaquinho como convém:
pelo ingresso – na bilheteria padronizada por segredos inconcebíveis
você se diverte com drinques morais à moda da casa – e paga só cem.

ontem sonhei que era o detetive Philip Marlowe e podia voar on the rocks.
as chaves do apartamento, pedir que Nilva traga as chaves do apartamento.
há brigas por menos que nada e as pessoas se preocupam em explicar tudo.
a teoria das abelhas é filosoficamente vital,
mas o trabalho das moscas é indispensável.
o artista, quando nasce, necessariamente morre.
e seus restos humanos residem na contradição
que lhe permite descaradamente
permitir que o corpo viva em vão.

mas comigo isso não acontece
e apesar de tudo tenho
absoluta convicção de que
aquilo que Brahms fez
na quarta sinfonia
não foi música e sim
uma espécie de pintura rítmica.

17.10.06

“sem saída”

todas as frases
são de amor.
mesmo a frase
de ódio
é na verdade
herança
de um amor
incompreendido.

15.10.06

“homem sentado na varanda de um bar”

que coisas bem sérias
são as mulheres cabisbaixas
que, baixas, recebem
todo o valor de um sonho salto
alto desvalorizado por olhos dentes
de um sujeito qualquer indecente
que apenas, sensível
em gritos silenciosos
espera o momento exato
de sair intacto, apaixonado
por um mundo vazio de lábios
ou membros dormentes despudorados
que, súbito, se enchem de artérias
como braços negros acorrentados
por dentro das calças sem saber como
nos sonhos de uma calçada perfis
confundem a silhueta da tarde
com a vontade que morde e arde.
elas são bem mais que Josefinas,
muito mais que sombras concretas.

Perséfones natimortas, almas de mármore,
elas são rastros num labirinto de olhares,
cisnes uterinos de lágrimas latentes
e nós, à mercê de quantos nós
o álcool fez em nossas mentes,
pobres mendigos depravados
disfarçados por sorrisos
mais antigos do que bocas,
também sem pés nem cabeças
conforme o pensamento cujos
calcanhares se entregam à gagueira
mas, pobres de nós, olhos puros de
sentimentos espremidos em calos
que, de gole em gole, morremos
e nunca recebemos o direito vago
de nos escondermos em sonhos
ou na indiferença superior
daqueles significados mudos
que passam sem dizer adeus
nas barras das saias dos anos.

13.10.06

“os vagabundos são os melhores amantes”

todo sentimento verdadeiro e único
está fadado a um final trágico.
seja através do mesmo erro mágico
que se mantém latente e úmido
sob a pele já sem cor do sentimento
mascarado por um comportamento
insuficientemente espontâneo
por conseguinte falso até a dor,
(e isso o transforma em ressentimento,
que é uma outra tentativa frustrada de fuga
na repetição requentada do sentimento original).
isso ou adesão abraçada por lágrimas sem olhos
nos braços da completa indiferença forjada
mais dor portanto pelo silêncio estuprado
que é sempre mais honesto e
moralmente mais adequado,
no entanto ainda mais trágico
pois neste caso específico
– o da solidão alada –
percebe-se que o amante
sem muito sacrifício
e mesmo bem antes
já não estava mais lá.

12.10.06

"música para ler e ouvir"






John Coltrane Quartet - tocando "Afro Blue"
no programa Jazz Casual,
apresentado por Ralph J. Gleason.

piano - McCoy Tyner
baixo - Jimmy Garrison
bateria - Elvin Jones
saxophone soprano - John Coltrane

11.10.06

“poema terminal”

são palavras diabéticas
mas não diabólicas,
apesar de sem pernas.

são folhas metabólicas
com aumento de açúcar
no sangue caduco
de quem pensou sobre
ontem amanhã será.

defeitos de secreção anunciarão
o alimento via veia com insulina
mas no fundo são apenas palavras:
minhas palavras, meus erros doces,
meus desejos carentes de glucanon.

e até que eu saiba o significado
exato da palavra patogênese,
esse rasgo na pele do pâncreas
deverá assumir que os erros doces
são responsáveis pela cegueira voluntária.

e enquanto o mijo sair cego
em pisos de azulejos alheios,
estarei mais perto, mas não junto
do acordo procurado como cura.

o fim da cicatriz, no fim
significa tão somente
a amputação do membro.

“chinaski”

dear henry,
i imagine what
you’d say about that…
perhaps it’s just
another mistake but
it’s specifically that:
i do like people.
and simple people,
without their meaning,
are just as beautiful
as they’d believe in
their would’ve being
masks.

9.10.06

“desconforto torácico”

tenho chorado ao assistir a filmes antigos e trágicos
em tardes pretas e brancas
desvanecidas em cinzas cômicas.
tenho chorado ao ver pergaminhos tortos
formados por formigas prenhas de velhos vícios
sobre a mesa da cozinha listrada.
tenho chorado pelos espaços vazios
entre as pedras portuguesas
do centro da cidade.
tenho chorado ao consultar o dicionário
sobre o verdadeiro significado
da palavra colear.
tenho chorado mais do que o chuveiro
sobre poros d’água coleados de miragens.
tenho chorado ao ler cartas amareladas
que escrevi a mim mesmo
depois de rasgá-las.
tenho chorado ao lembrar de mãos
com unhas vermelhas e gastas
prendendo cuecas no varal de náilon.
tenho chorado ao me lembrar
de que não lembro nada
sobre nossa infância ancestral.
tenho chorado sempre que vejo alguém chorar
em silêncio escondido por mãos fratricidas.
tenho chorado ao jogar moedas de farpas
a um senhor que não movimenta mais as pernas
e vive dentro de uma caixa de papelão
– porque ele sorri mais do que você e eu.
tenho chorado por quartos escuros no meu coração
lotados de crianças enfartadas.
tenho chorado por jóqueis novatos de Belford Roxo
que ganharam os últimos dezessete páreos.
tenho chorado por pugilistas aposentados.
tenho chorado por bailarinas degadianas:
prostitutas em calos impressionistas.
tenho chorado por não conseguir evitar
a chuva tórrida de discussões hipócritas
que inunda de tédio a verdadeira mentira.
tenho chorado quando nuvens de dentes
sangram as gengivas da loucura paciente
de entregar um dossiê de rosas eufóricas
à faca azul celeste do Parque Farroupilha.
tenho chorado sentado sobre paradigmas
porque uma menina que lê à beira do lago
virou reflexo bêbado no espelho d’água.
tenho chorado porque falo e ouço falarem de amor
como se isso nos desse algum tempo a mais.
tenho chorado com falta dos meus pais
enquanto a barba cresce inadvertidamente.
tenho chorado ao ler Carlos Drummond de Andrade
quando ele diz que está preso à sua classe
e a algumas roupas vestidas de náusea.
tenho chorado por um pássaro de peito amarelo
que fez um buraco no chão de terra com o bico:
os olhos estalados por algo que não admito.
tenho chorado por tanta gente que nem conheço
que acabo vazio de tudo e, súbito, me esqueço
dessa falácia que é "conhecer a si mesmo".
tenho chorado tanto e por tanto tempo
confundindo vinho com ressentimento
e desconfiado de que talvez tudo isso
importe ainda menos aos ciscos livres:
cólicas dançarinas que norteiam o ventre
do sorriso estuprado pelos olhos do meu rifle.

8.10.06

“verdade cotidiana raramente comunicável”

é fácil ser hipócrita e
ao mesmo tempo ser
crível e agradável
enquanto se é hipócrita
mas ao mesmo tempo
assim é ainda mais fácil
e difícil ainda porém
muito útil e menos sexual
do que o armistício
da frase sozinha
que se tornaria sólida
como na cabeça de quem
nem se quer saberia
mais do que gosta
mas gosta da curva
do sorriso hipócrita
no tratamento de tártaro
por riso como se fosse
aorta agora facetada
errata para eternas caretas
Atenas pela repetição de cismas
simplesmente no largar o não
no ato de me pegar na mão e
no que rodar no ar já não
sempre tão tenra e sem
saber o que fazer da cera
senão seria o bastante no
invisível ciúme que ocupará
vergonhas disfarçadas de vontades
desatentas para resolver celeumas
nas quais nossos avós jamais
poriam fé ou os pés por mais
que o deslize sofra de asma
como nós ou como nossos
avós.

6.10.06

"remorso"

às vezes
um pingo
de vinho
esquecido
na mesa
domingo
significa
a tristeza
mais que
o suicídio
daquele ex
antigo amigo
proxeneta.

5.10.06

"Moça linda bem tratada" (Mário de Andrade)


Moça linda bem tratada,
Três séculos de famíla,
Burra como uma porta:
Um amor.

Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.

Mulher gordaça, filó,
de ouro por todos os poros,
Burra como uma porta:
Paciência...

Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.

4.10.06

"O último poema" (Manuel Bandeira)


Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

3.10.06

"essa gente verbal"

mundo gerúndio:
aliteração do caráter
de um grito morfológico
no silêncio onomatopaico.

muito cuidado, é claro
sempre é necessário.

arredores pelos ares
das dores de arredar
o pelo menos o mesmo
verbo que arrasta afoito
o nosso medo morto.

enquanto isso omitimos
dores, amores, Plutão
Platão, miragens, pestes
epidemias, enchentes, sonetos...

mais ainda, nós damos um jeito
de fazer com que certos olhos
nos forcem a pertencer a pastas.

mundo gerúndio:
sujeito abstrato na
cocaína sem rima
de feridas gengivas
infinitivas de noites
há pouco mal-dormidas
em espelhos canhotos
de sonhos impessoais.

mas existe essa gente verbal
cujos queixos nos apresentam
nada, além de uma geléia geral
sem Torquato nem quarto de lua
escravidão semântica que gruda
no desprezo das solas dos anos:

“viver é lutar”
“lutar é poder”
“poder é amar”
“amar é viver”.

mas meu emprego
não é particípio
e nem poderia.
não forma futuro
do subjuntivo
porque poesia.

verbos são berros
no fim dessa feira.
são certos e cegos:
silêncio de cera.

ecos anômalos
defectivos
unipessoais
nominais
irregulares
auxiliares
secos de crase.

como pó
como nós
como frases.

“laços de bronze”

pai...
quando vi os olhos de bronze
de Drummond e Mário Quintana
num banco da Praça da Alfândega
ouvi sinos – talvez de uma igreja
e me lembrei de um domingo
quando engolimos calados nossa ceia
porque afinal era domingo de natal
e depois, já na rua, lembrei também
que estávamos bêbados e sentimentais
e você falou comigo através de ombros
sobre um texto meu que tinha lido
sobre você e sobre seu próprio pai.

e me lembrei que você enxugava os olhos quando voltei do banheiro
e comemos arroz amarelo com tempero indiano e peixe ao sal grosso
e que o garçom te conhecia pelo nome, o que me deixou feliz.
lembrei de tudo atravessando a praça sob olhos de bronze,
inclusive daquelas frases silenciadas por soluços de fome
e, além destas, coisas tão importantes quanto pequenas,
quanto o silêncio que as cobriu de pó sobre nosso baú.
lembrei também de como estou longe agora
do abraço que nunca te dei conforme os braços tremiam
porque queria um abraço mais longo do que a verdade.
lembrei também de que quando saímos do restaurante
– bêbados e sentimentais, assobiando uma canção antiga italiana
para que palavras indefinidas não estragassem o momento mágico –
passamos por um sinal vermelho por volta da meia-noite de natal
e um menino de rua se aproximou com um pacote de balas e lágrimas negras
e você deu a ele uma nota de 50 reais e então fomos embora em silêncio
como se estivéssemos ambos envergonhados por não ter feito algo melhor.

então chorei no meio da praça
(eu a criança que cavou a esperança na calçada)
como se fosse eu mesmo aquele menino de rua
que olhava pela janela do carro
duas pessoas que se amavam
sem saber como lidar com isso
a não ser de forma natural,
o que significa deixar o saber de lado.
e sei que Drummond talvez julgasse isso mal
e que talvez Quintana preferisse falar de sapatos,
mas foi preciso escrever isso para adocicar meus passos,
pois meus olhos tentam burlar tua falta mas ardem como sal,
pai...

2.10.06

“três pontinhos”

revirar a volta escura
até que se torne pura
e faça com que a rota de fuga
arrote essa revolta muda
e a antiga reviravolta
em cuja morte vive a pulga
torne-se espécie eunuca:
sopro clandestino,
nuca em riste...

a inocência é mãe das virtudes
e
madrasta de todos os pecados.

e com o tempo perdido às escuras
sentindo falta do que falta ao tato
percebemos que o único antídoto
para o espinho venenoso da loucura
de fato – fatalmente – ou dos fatos
é a solidão sem charme ou cura.

mas eu nunca
poderia admitir isso
sem reticências...

Vladimir Maiakovski


"Amar não é aceitar tudo.
Aliás: onde tudo é aceito,
desconfio que há falta de amor".

1.10.06

“so you want to be a writer?” (Charles Bukowski)

if it doesn't come bursting out of you
in spite of everything,
don't do it.
unless it comes unasked out of your
heart and your mind and your mouth
and your gut,
don't do it.
if you have to sit for hours
staring at your computer screen
or hunched over your
typewriter
searching for words,
don't do it.
if you're doing it for money or
fame,don't do it.
if you're doing it because you want
women in your bed,
don't do it.
if you have to sit there and
rewrite it again and again,
don't do it.
if it's hard work just thinking about doing it,
don't do it.
if you're trying to write like somebody
else,
forget about it.

if you have to wait for it to roar out of
you,
then wait patiently.
if it never does roar out of you,
do something else.

if you first have to read it to your wife
or your girlfriend or your boyfriend
or your parents or to anybody at all,
you're not ready.

don't be like so many writers,
don't be like so many thousands of
people who call themselves writers,
don't be dull and boring and
pretentious, don't be consumed with self-
love.
the libraries of the world have
yawned themselves to
sleep
over your kind.
don't add to that.
don't do it.
unless it comes out of
your soul like a rocket,
unless being still would
drive you to madness or
suicide or murder,
don't do it.
unless the sun inside you is
burning your gut,
don't do it.

when it is truly time,
and if you have been chosen,
it will do it by
itself and it will keep on doing it
until you die or it dies in you.

there is no other way.

and there never was.

*** tradução livre minha mesmo ***

“então você quer ser um escritor?”

se não explodir de dentro de você
apesar de tudo,
não faça.
a menos que venha sem ser chamado
do seu coração e sua mente e sua boca
e suas tripas,
não faça.
se você precisa sentar por horas
encarando a tela do computador
ou encurvado sobre
sua máquina de escrever
procurando por palavras,
não faça.
se você está fazendo pelo dinheiro
ou fama,
não faça.
se você está fazendo porque quer
mulheres na sua cama,
não faça.
se você precisa se sentar ali
e reescrever de novo e de novo,
não faça.
se dá trabalho só pensar no assunto,
não faça.
se você está tentando escrever como outra
pessoa,
esqueça.

se você precisa esperar rugir de dentro
de você,
então tenha paciência.
se nunca rugir de dentro de você,
faça outra coisa.

se você antes precisar ler para sua mulher
ou sua namorada ou seu namorado
ou seus pais ou qualquer pessoa,
você não está pronto.

não seja como tantos escritores,
não seja como tantos milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não seja estúpido e chato e
pretensioso, não seja consumido com amor
próprio.
as livrarias do mundo têm
bocejado até
dormir
sobre o seu tipo.
não acrescente a isso.
não faça.
a menos que venha de dentro
da sua alma como um foguete,
a menos que seja ainda o que
levaria você à loucura ou ao
suicídio ou assassinato,
não faça.

a menos que o sol dentro de você esteja
queimando suas tripas,
não faça.

quando chegar a hora real,
e se você tiver sido escolhido,
a coisa se dará
por si só e manterá você fazendo isso
até morrer ou isso morrer em você.

não há outro caminho

e nunca houve antes.

“brazil”

esperar cinzas serem brancas
para renegar o amarelo de agora
mas se o verde incomoda a hora
por que promessas são azuis?

30.9.06

“anacrônico”

eu grito
plumas
de ilhas
náufragas
onde penas
agitadas
em mastros
cômicos
hibernam
cômodos
de onde
apenas
almofadas
prateadas
sintéticas
não podem
emplumar
solfejos
sincrônicos.

29.9.06

"Aquilo que criticam, cultive-o, porque é você"
(Jean Cocteau)

28.9.06

“Avenida Farrapos, 146: cabelos na cintura”

eu te amo muito mas
o amor é uma palavra
e não um sentimento.

então sinto muito mas
o amor que não palavra
vai sempre com o vento

quando se quer muito mas
o crime suspenso em dó maior,
situação tragicomisuicida
numa única estação inerte,
perdura apenas enquanto cílio.

eu te amo muito mas
o amor de olfato de fato
jamais deveria ser dito.

pecado enterrar de quatro
as letras que não cabem
sobre a maquiagem pesada
chamada vida – ou Sílvia.